A semana em que se completaram cinco décadas do golpe civil-militar que apeou João Goulart do poder e instaurou uma ditadura sanguinária foi marcada por uma série de descomemorações e reflexões acerca do nefasto regime e de seus frutos hoje, 30 anos depois da “redemocratização”.
A ditadura não nos roubou apenas 20 anos. Ela está viva na truculência e na violação sistemática dos direitos humanos na política oficial de segurança, na precariedade da educação e da saúde públicas que só beneficia grupos privados, na despolitização de parte da população que repete que “político é tudo safado”, menosprezando qualquer militância política. E no onipresente sistema audiovisual de discurso único e linguagem infantilizadora.
De todos os destroços deste tempo que sobrevivem nas nossas vidas cotidianas, porém, nenhum me impressiona tanto quanto a nossa própria memória coletiva esburacada.
Só ela pode tolerar que ainda hoje os livros de história adotados nos colégios militares do país chamem o golpe de uma “Revolução levada a efeito não por extremistas, mas por grupos moderados, respeitadores da lei e da ordem“. Uma desgraça, ainda que nada surpreendente, tendo em vista a incapacidade das Forças Armadas de fazer qualquer autocrítica, que também se expressa na má vontade crônica em relação às Comissões da Verdade.
Pude confrontar a minha própria ignorância e imensas lacunas sobre o período quando fui convidada, em 2012, por Leneide Duarte-Plon para escrever com ela a reportagem biográfica Um homem torturado – nos passos de Frei Tito de Alencar, que lançamos neste mês de abril de 2014.
Frei Tito morreu em 1974, vítima das torturas que sofrera no Deops, em novembro de 1969, e no Doi-Codi, em fevereiro de 1970.
História e imaginário
Nasci em 1976, numa família de esquerda – meu avô, Silo Meireles militou ao lado de Luis Carlos Prestes e foi um dos líderes do levante comunista em Recife, em 1935, pronta e violentamente debelado pelo governo Getúlio Vargas. Sempre me emocionou a história de vida desse avô que não conheci, e que passou 10 dos 57 anos de vida no cárcere.
Toda a minha escolaridade foi feita num colégio metodista, de orientação progressista, humanista, onde tive ótimos professores de História e Geografia. Ainda assim, ao mergulhar na literatura sobre o período (já vasta há dois anos, e felizmente cada vez mais rica), me dei conta do meu quase total desconhecimento sobre algumas das pessoas mais generosas, sonhadoras e fantásticas que este país já conheceu.
Sinto-me ainda em grande medida traída pelo meu país. Ao cruzar a ponte Rio-Niterói, temos que suportar que ela homenageie o general Costa e Silva, um dos ditadores autoempossados presidentes num regime ilegal e ilegítimo. Ao visitar a família em Teresópolis, tenho que seguir a indicação de que dobrando à direita entramos na Estrada General Ernesto Geisel.
Pois são eles que ainda povoam nossos territórios reais e imaginários e nossos livros de História – e não as mulheres e os homens que foram capazes de arriscar suas vidas por um projeto de país mais justo, dispostos a viver na clandestinidade, a se calar na tortura para salvar a vida de tantos outros.
(É importante louvar que se multiplicam esforços pontuais para des-homenagear ditadores e, sobretudo, o projeto Cartografias da Ditadura, do Iser, trabalho de mapeamento de lugares de memória relacionados tanto à resistência quanto à repressão no estado do Rio de Janeiro, lançado no âmbito das “descomemorações” do cinquentenário do Golpe).
Cegueira coletiva
Só nosso analfabetismo político explica o discurso monocórdio de uma imprensa que, em 2010, durante a campanha presidencial tentou criminalizar a então candidata Dilma Rousseff pela sua ativa militância nos anos 1960. Apenas um país que não nomeou os verdadeiros criminosos e não reconheceu a grandeza de seus resistentes pode aceitar que convicções ideológicas sejam travestidas de crimes.
Também é só nossa cegueira coletiva que nos faz continuar a aceitar as atrocidades das polícias militares de hoje, que se beneficiam de eterna impunidade, e não só a partir da Ditadura. Temos que lembrar que a polícia sempre torturou e matou pobres neste país. Durante a Ditadura civil-militar, militantes operários e pequeno-burgueses experimentaram essa mesma truculência em nome de uma “guerra anti-subversiva” e do anticomunismo, quando prisões arbitrárias e tortura se tornaram política de Estado e a imprensa, censurada, era obrigada a se calar.
O projeto do livro que chega às livrarias depois de dois anos e meio de trabalho também me interessou enormemente pelo fato de a trajetória de frei Tito jogar luz sobre o papel fundamental de setores progressistas da Igreja Católica na resistência à ditadura.
Como Tito afirmou numa entrevista em 1972, “o Evangelho traz uma crítica radical da sociedade capitalista. Nesse sentido, é revolucionário. Os temas da esperança, da pobreza, do messianismo, que são profundamente bíblicos, estão na fonte do movimento revolucionário. Não vejo realmente como ser cristão sem ser revolucionário”.
O engajamento de Tito e de seus companheiros era fruto direto de uma compreensão do papel da Igreja trazida pelo Concílio Vaticano II, que se abria ao ecumenismo e procurava ampliar os espaços da fé católica no cotidiano, aproximando-se do povo. Apesar da posterior perseguição do Vaticano à Teologia da Libertação, no papado de João Paulo II, muitos religiosos ainda acreditam, vivem e pregam uma fé transformadora, como se pode atestar pelo trabalho das Comunidades Eclesiais de Base e da Comissão Pastoral da Terra, para dar alguns exemplos.
O amigo mais próximo de Tito no seu último ano de vida, o frade dominicano francês Xavier Plassat, por exemplo, desde 1989 desenvolve seu trabalho pastoral no interior de Tocantins e atualmente é o coordenador da campanha da Pastoral da Terra contra o trabalho escravo.
Entrevistamos mais de 30 pessoas que conviveram com Tito desde sua infância e adolescência – como sua irmã Nildes, que o criou, e o ex-deputado federal José Genoino, que conviveu com Tito em Fortaleza, na militância da Juventude Estudantil Católica (JEC) – até o fim da sua vida, na França, onde estivemos com seu psiquiatra, Jean-Claude Rolland e a maioria dos frades franceses e brasileiros que conviveram com ele no exílio.
De sua juventude, entrevistamos seus confrades dominicanos do Convento das Perdizes, a maioria do núcleo de apoio à Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella, como Frei Betto. Tivemos ainda a oportunidade de falar com muitos dos companheiros de Tito no voo dos 70 presos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bücher, sequestrado em 1970. Muitas portas e arquivos nos foram abertos, com destaque para o precioso arquivo de Magno Vilela, ex-dominicano que também viveu exilado em Paris e hoje é historiador em São Paulo.
Resposta política
Hoje, é fácil olhar para trás e acusar os guerrilheiros de ingênuos. Em 1973, Frei Tito já fazia uma autocrítica, quando escreveu: “É necessário e urgente responder politicamente à ditadura. Nessa perspectiva, penso que a luta armada, como forma de luta principal, é um erro”.
O fato é que, num mundo em que a concentração de riqueza só aumenta, a luta por justiça social nada tem de demodê. Sobretudo porque, crise após crise, o capitalismo parece sempre capaz de se reinventar, inclusive na forma de grandes eventos esportivos que se travestem de “oportunidades” com custos econômicos e humanos inaceitáveis.
Os trabalhos da Comissão da Verdade e a efeméride dos 50 anos do golpe são oportunidades preciosas, pois sem dúvida os acontecimentos daquele período – e a falta de reflexão coletiva sobre eles – impactam ainda, de forma crucial, a política e a sociedade brasileiras.
Como Vladimir Safatle afirma, no prefácio do livro, “nesse contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais”.
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Clarisse Meireles é jornalista, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Escreveu junto com Leneide Duarte-Plon o livro Um homem torturado