Afonso Borges é um jornalista que já. Já passou uma semana ocultando-se do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda. Já viu o português José Saramago sentir o vento dos aplausos no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Já presenciou os mineiros Fernando Sabino e Hélio Pellegrino se empurrarem na rua da Bahia como meninos de escola. Já escondeu na casa dele, por meses, uma testemunha-chave do caso Chico Mendes, a pedido do jornalista Zuenir Ventura. São vivências do Sempre um Papo, ótimo programa de palestra com escritores, por ele criado em 1986.
Em entrevista exclusiva, o produtor belo-horizontino fala sobre o assunto no título desta página, analisa a invasão dos eletrônicos, se recusa a revelar uma gafe qualquer cometida por seja lá qual autor, conta um caso sobre o poder transformador dos livros, que presenciou numa favela mineira, e garante: uma cidade, quando trata os livros como desenvolvimento, vence. “Os ganhos são gigantescos”, comenta: “A literatura é a única arte que traz consigo o prestígio e a credibilidade do melhor da educação formal”.
Com quase trinta anos no comando do Sempre um Papo, qual foi a melhor história que ouviu e de quem?
Afonso Borges – Não há a melhor, e sim as melhores. Você me pede uma história entre mais de 1500 eventos. Vi Fernando Sabino e Hélio Pellegrino subirem a rua da Bahia, onde eles cansaram de fazer o footing, na década de 40, se empurrando e fazendo o outro tropicar até lá em cima, como crianças. Vi José Saramago entrar no Grande Teatro do Palácio das Artes e mais de 1800 pessoas pularem da cadeira num apupo emocionante. Ele voltou, me pegou pelo braço e disse: “Afonso, é a primeira vez que sinto o vento das palmas”. Escondi em minha casa, durante seis meses, o Genésio Ferreira da Silva, testemunha-chave do caso Chico Mendes, a pedido de seu tutor, Zuenir Ventura. Tá bom?
Está. Por favor, conte um caso pitoresco do Sempre um Papo.
A.B. – Pitoresco? Você me pede para contar o que não posso contar…
Então, um caso emocionante sobre a função transformadora dos livros.
A.B. – Zeca Camargo veio ao Sempre um Papo. À tarde, o levei para palestra na Biblioteca Comunitária que fica no alto do Morro do Papagaio. O tráfico parou e nos deixou subir. Lá, vi meninos sentados, jogando joguinhos em computadores. Chamei a bibliotecária e perguntei porque não estavam lendo. Ela me disse que, a essa altura da tarde, eles já haviam lido, feito os deveres de casa e estavam brincando. E que muitos daqueles meninos ficam ali porque são espancados em casa. A biblioteca os protege. A ida do Zeca àquela biblioteca resolveu mais um problema: o tráfico passou a respeitá-la. E ela, a biblioteca, está lá, firme, até hoje.
Ótimo caso. Conte mais.
A.B. – Lançamento de livro do Bartolomeu Campos de Queirós, na Savassi. Me chegou uma senhora, com o marido e e dois filhos. Disse que tinha ido ali só para me agradecer, coisa que deveria ter feito há anos. Ela esteve numa palestra do Zuenir Ventura, no lançamento de 1968, o Ano que não Terminou. Era professora primária, então. Depois daquele dia, decidiu mudar sua vida. Graduou-se em outra profissão, começou a dar aulas na UFMG, onde conheceu seu marido, e foi lá para me apresentar seu dois filhos. E agradecer. Só esse caso já valeram os 28 anos.
Com patrocínio da empresa Vale, Itabira sediou três edições do Sempre um Papo, durante um governo municipal burramente inimigo dos livros – aliás, governo que demitimos nas urnas em 2012. Que avaliação faz desses eventos? Pode falar com total liberdade, não cortarei nada.
A.B. – A melhor possível. O povo de Itabira reconhece o lugar onde está na cultura mineira e brasileira.
Itabira tem Drummond, mais que um pré-sal de riquezas, mas ainda não é cidade literária, não trata o livro como desenvolvimento. Um grande vacilo, não?
A.B. – Mais que vacilo, é burrice. Dublin está no mapa só por causa de James Joyce; Valparaíso, graças a Pablo Neruda, e por aí vai. Como Itabira pode dar as costas à sua importância literária no mundo, sendo a cidade do maior poeta que o Brasil, talvez a América Latina, já teve? Isso é questão de Estado. Envolve turismo, cultura, economia, planejamento, tudo.
Bartolomeu Campos de Queirós me disse, em entrevista, que às vezes sentia vontade de se dar por vencido na defesa da leitura como desenvolvimento, pois os governos gostam é da ignorância. Já sentiu também esse cansaço de Brasil?
A.B. – Bartô adorava reclamar e resmungar, mas era uma espécie de mantra para dar início a uma mensagem linda, inteligente, próspera e coerente sobre a educação e a cultura. Um certo ceticismo faz bem para o senso crítico, e ele praticava diariamente esse esporte.
“Os governos gostam mesmo é da ignorância.” Essa frase dele ainda ricocheteia na minha cabeça.
A.B. – Mais uma alegoria, sincera, do Bartô. Ele provocava, irritava, mas era de uma esperança enorme num estado melhor de coisas.
Quais os ganhos para uma cidade quando trata a leitura como se deve?
A.B. – Gigantescos, muito maiores do que pode calcular um governante ou mesmo o empresariado. A literatura é a única, entre as artes, que traz consigo o prestígio e a credibilidade do melhor da educação formal. Os escritores têm na bagagem literária a força do conhecimento, da madureza, da informação qualificada. Uma cidade que tem um festival literário submerge na sua própria história e na história dos outros. Basta ver o que era Paraty antes e depois da Flip, ou o que era Passo Fundo.
Drummond, literatura, letras, arte, cultura, logo: Itabira, cidade literária. É vocação óbvia demais para ignorar. Penso que Itabira deveria ser a cidade mais literária do Brasil, ou uma das. Estou errado?
A.B. – Você está certíssimo, mas, como eu disse, essa não é uma questão meramente literária ou cultural. Estamos falando de desenvolvimento, educação, economia e, principalmente, turismo.
Eventos literários bem-sucedidos atraem um público crítico. É importante que a cidade esteja bem para receber professores, escritores, historiadores e jornalistas, entre outros, com praças bem-cuidadas, ruas limpas, bom atendimento no comércio… Por favor, fale sobre isso.
A.B. – Isso é uma consequência da forte atuação literária: complementa a educação. Fortalece vínculos, promove o desenvolvimento. Tudo porque, na verdade, a leitura continuada tem uma qualidade fundamental: elabora a concentração, e com ela vem o centro, o equilíbrio. São as boas consequências que a leitura e a literatura trazem.
Qual seu recado aos políticos que tratam a leitura com desprezo?
A.B. – Investir em cultura, literatura e leitura é uma salvaguarda.
Fofocando com fulano de sua equipe, soube que o senhor passou uma semana se ocultando de Chico Buarque. Não vale não contar esse caso. Como foi?
A.B. – Tragicômico: fiz o Sempre um Papo com o Chico e o Raduan Nassar, no Palácio das Artes. Na hora da leitura, o Raduan resolver fazer gracinha e trocou a leitura escolhida do livro do Chico. Não deu sorte – o trecho escolhido era uma “cantada” cheia de sensualidade. Ele começou a rir, rir, desconcertado e, de repente, todos no Palácio, mais de 1.800 pessoas, tiveram um surto de riso. Foi difícil parar. E foi gravado por uma TV universitária. O Chico me ligou, pedindo a fita. Eu comecei a cobrar do pessoal que tinha gravado e eles não me davam resposta. E o Chico me ligando, até que eu comecei a ficar com vergonha e mandava dizer que não estava. Até que a menina que gravou me revelou a verdade: tinham perdido a gravação. Aí fiquei mais uma semana mandando dizer que não estava, até tomar coragem de dizer pro Chico a verdade. Ele ficou decepcionado, assim como todos. Foi isso.
Eu acuso: com tantas histórias do mundo literário, se o senhor não lançar um livro contando-as, cometerá um crime de lesa-cultura. Quando sairá seu livro sobre os intramuros do Sempre um Papo?
A.B. – Sinceramente, não sei. Acompanhei e acompanho carreiras inteiras de alguns dos mais importantes escritores brasileiros. Não quero fazer um anedotário. Enquanto não encontrar um formato legal, fico na moita.
Poderia nos revelar uma gafe cometida por um escritor – se quiser citar o nome do cujo, melhor ainda.
A.B. – Não, não.
Tentei, leitor, tentei… Ruy Castro sugeriu uma estátua do senhor em praça pública, pelo valoroso trabalho em favor da leitura, do livro, dos escritores. Onde prefere que essa peça seja instalada?
A.B. – Na frente de um restaurante, para servir um belo jantar aos meus amigos escritores, sempre que vierem a Belo Horizonte.
Quinquilharia eletrônica como absorvedora da concentração dos jovens. Que conclusão tem sobre o assunto?
Vai piorar para depois melhorar. A conexão se transformará em hiperconexão, extraultrapowerconexão. Depois, a próxima geração vai achar péssimo ficar ligado o tempo inteiro e o foco da rebeldia será a tecnologia. Acampar, ficar um tempo sem aparelhos eletrônicos, escrever cartas, conversar pessoalmente, olho no olho, essas coisas antigas e boas para o ser humano, voltarão com toda força. Um dia, alguém vai perguntar: “Você lê livros no iPad? Que coisa mais antiga, gosto mesmo é do livro, moderno, que não precisa de bateria nem prejudica a visão”.
O Sempre um Papoestá fazendo 28 anos. O senhor olha para trás, respira fundo, dá uma golada no dry-martíni e diz exatamente o quê?
A.B. – O meu maior patrimônio são os amigos.
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Marcos Caldeira Mendonça é editor d’O TREM Itabirano