Nas linhas introdutórias a Monteiro Lobato, Livro a Livro – Obra Adulta, a professora de Teoria Literária Marisa Lajolo estabelece patamares essenciais à compreensão do autor. Diz ela: quem o conhece ali da porteira do Sítio do Picapau Amarelo, já pôde experimentar um grande escritor. Quem o conhece dos textos para gente grande, dos quais saíram personagens seminais, como a Negrinha, o Jeca Tatu e um Zé do Brasil, também travou contato com uma originalidade sem limites. Mas quem agora puder tomar nas mãos o volume lançado hoje, para o qual Lajolo não só fez a introdução, mas atuou como organizadora, daí então descobrirá facetas dadas por perdidas ou ignoradas em Monteiro Lobato (1882-1948).
Entre 1945 e 1946, o próprio escritor reuniu sua obra para adultos, chamando-a de Literatura Geral. Dividiu-a em 13 volumes para 16 títulos, cruzando gêneros – uma novela, um romance, contos, artigos de jornal, prefácios, correspondência, cadernos com impressões de viagem e até guardados de fundo de gaveta. Como sintetiza Lajolo, “um mundo de textos!” Em carta a um grande amigo, Lobato diria: “Imagine que a Brasiliense propôs, e eu aceitei, o lançamento de minhas… Obras Completas, Rangel! Em 30 volumes, vendidas pelo sistema Jackson…”, comemorava, referindo-se ao modelo de vendas da enciclopédia Tesouro da Juventude. Já nos idos de 1950, após a sua morte, Edgar Cavalheiro, seu biógrafo, continuou juntando textos esparsos, outros pesquisadores seguiram nessa toada e hoje já foram publicados 25 volumes da obra adulta lobatiana (pela Editora Globo, a partir de 2007).
Agora, para este lançamento da Editora Unesp, coube a Marisa Lajolo pedir a um grupo de especialistas que comentassem e contextualizassem os livros adultos, tal como já havia feito com a obra infantil do escritor de Taubaté. Os especialistas, por sua vez, mergulharam nos títulos e deles retiraram material de análise que extrapola os limites do estudo literário. “(…) os leitores ficam conhecendo, ou ganham maior intimidade, com um Lobato que se afasta da varanda do sítio para debruçar seu olhar sobre outros terreiros, de onde descortina o mundo”, reflete Lajolo.
O desvendamento é constante. O livro aponta conexões entre a obra infantil e a adulta, quando aquela mesma irreverência da boneca Emília emerge em um artigo de jornal, por exemplo. Estabelece que não existe um só Lobato, mas vários, e que a sua pluralidade é também a pluralidade dos brasis. Aspectos constitutivos da obra e de seu criador, como o gosto pela polêmica e a veia destemida, são visíveis desde o seu primeiro artigo de impacto na imprensa – chamou-se “Velha Praga”, publicado no Estado de S.Paulo em 1914, jornal com o qual Lobato manteve parceria fecunda e duradoura – até a publicação de “Zé do Brasil”, em 1947, que tanto alvoroço causou também.
“Renda literária estabilizada”
Monteiro Lobato, Livro a Livro começa analisando O Saci-Pererê: Resultado de Um Inquérito, obra de 1918, feita a partir de uma enquete sobre o diabrete em forma de menino com os leitores do Estado, por provocação do escritor – ele próprio selecionou, e muitas vezes editou, os 74 depoimentos publicados no livro. Há de tudo, inclusive o assombro de um leitor por um saci que vira urso. Assim, ao lidar com nossas lendas, Lobato vai firmando sua crítica ao eurocentrismo que aprisionava a cultura brasileira.
No capítulo dedicado aos artigos reunidos em Urupês, o primeiro best-seller nacional, o professor de literatura João Luis Ceccantin aprofunda contrastes. “Na visada crítica e corrosiva do escritor, confrontavam-se dois mundos: um urbano, que aspirava ao cosmopolitismo europeu, e um rural, esmagado por sua implacável condição de atraso (…).” E os capítulos seguem ressaltando a inabalável disposição do autor em se envolver nos debates de seu tempo, com a obstinação de quem quer curar as mazelas do povo para livrá-lo do atraso.
Os debates mudam com o passar dos anos. Tem-se, em dado momento, o Lobato fascinado com a cruzada do médico e cientista Oswaldo Cruz contra as doenças do subdesenvolvimento, as endemias – não à toa Jeca Tatu é apresentado como um “parasita da terra”. Ou com a figura heroica de Henry Ford, motor do desenvolvimento tecnológico sobre o qual Lobato passaria a escrever a partir de 1920.
Há o Lobato a discutir o papel que a siderurgia teria no futuro brasileiro, como se vê no livro Ferro, analisado pelo engenheiro Fernando Landgraf. Ou o que se envolve, até profissionalmente, com a exploração do subsolo, o que daria origem ao livro O Escândalo do Petróleo, miscelânea de artigos em torno do potencial de riquezas desse “fedorento sangue da terra”. Como assinala Katia Chiaradia, a luta ostensiva de Lobato contra a Standard Oil equivocadamente lhe deu a fama de “pai do petróleo nacional”. “Ser contrário à exploração pelos norte-americanos não implicava ser favorável à exploração pela União”, afirma a pesquisadora, lembrando que o escritor defendia a iniciativa privada e acordos com outros países.
No capítulo “Centenas, Milhares”, encontra-se o Lobato das cartas, esparramando-se numa correspondência vastíssima, através da qual não só constrói sua imagem, como também ousa despir-se aqui e ali: “Vivo, e sempre vivi, de livros. (…) Quando os ferros, e petróleos e todos os mais negócios falharam, dei balanço em minha vida e encontrei-me pai de uns 40 filhos…” Foram muitos anos dedicados ao embate das ideias, em diversos fronts, até que pudesse admitir: sua meta suprema era tão somente a “renda literária estabilizada”. Escrever não era outra coisa senão trabalho. Simples assim.
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Laura Greenhalgh, do Estado de S. Paulo