Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um livreiro em eterno movimento

Na tradição brasileira, o livreiro se tornava editor. Ocorreu com Pedro Herz, depois de um fim de noite animado com dois amigos em fins dos anos 1970. No selo para celebrar a literatura brasileira, chamada Editora Cultura por nascer de sua Livraria Cultura, os sócios eram o contista Ricardo Ramos, filho de Graciliano, e o jornalista Gilberto Mansur. Desistiu da casa editorial antes que se ocupasse mais. Não seria um novo José Olympio, que, décadas antes, fizera de uma loja a editora lendária – no entanto tão lendária que o comércio de Olympio parou de expandir. Em compensação, a livraria de Herz, com toda atenção do dono, cresceu e é hoje uma rede de 19 lojas em todo o país, a 20ª no horizonte, faturamento que deve ultrapassar os R$ 500 milhões neste ano.

“Provavelmente, se continuasse com a editora, a livraria teria ficado prejudicada”, avalia Herz, quando se completam 45 anos da abertura da primeira loja no Conjunto Nacional, desenhado por David Libeskind, um dos símbolos arquitetônicos da avenida Paulista que progredia. Aquela era uma revolução familiar: venciam o medo de se lançar em tamanho comprometimento financeiro com a visão de que prosperariam. Razão para o medo, havia.

Eva Herz, a pioneira, conhecia a perda, a experiência do exílio e o recomeço após a perseguição em seu país natal. Conseguira fugir com a roupa do corpo de uma Alemanha nazista às vésperas da guerra, quando o cerco aos judeus recrudescia. Na pressa, nem deu tempo de os parentes embarcarem todos juntos. Instalaram-se modestamente em São Paulo.

Quando o conflito mundial acabou, a matriarca resolveu ajudar a incrementar a renda da casa, garantida pelo marido, um representante comercial da indústria de confecção que, no Brasil, manteve-se no ofício que exercia na Alemanha.

A jovem senhora, já com dois filhos, montou um clube de leitura caseiro para atender à comunidade alemã que sentia falta de obras em seu idioma natal. Estreou o empreendimento com dez livros importados, alugados por módica quantia semanal. Com a procura, passou a também vendê-los e, depois, a incluir no acervo edições brasileiras, sobretudo best-sellers muito disputados. Com margens ínfimas, crescia lentamente, resguardando-se de risco maior.

A roda gira

Em abril de 1969, a data da revolução familiar, Eva não estava mais só. Ao seu lado, estava o filho mais velho, administrador de empresas de 29 anos e experiência em editoras como Abril e Melhoramentos: Pedro Herz. A biblioteca circulante teve de acabar, era parte de um tempo romântico substituído por outro, de exigências e compromissos como condomínio e salário de funcionários. Havia mais razão para medo. O país vivia nova ditadura, o Ato Institucional nº 5 contava poucos meses e a repressão atingia livreiros.

Herz perdeu a conta de quantas vezes recebeu a visita do chefe da censura ou de algum dos seus emissários a cada lançamento, que por vezes transcorria entre ameaças de fechamento da loja e entoação do hino nacional. “Nunca fui preso, mas sempre tinha de responder por que vendia ‘O Capital’. Ora, porque sou livreiro, e a USP o adotava”, recorda. Livros vindos do exterior eram apreendidos na alfândega. Entre os casos curiosos, há o dos três exemplares da mesma obra, de arte erótica chinesa do século XV, sobre os quais teve de se explicar. “Consegui recuperar um. Os dois que foram para Brasília nunca retornaram.” Poucas vezes viu a loja tão abarrotada de gente como quando o então ex-guerrilheiro Fernando Gabeira lançou “O que É Isso, Companheiro?”, em 1979, na volta dos exilados e em clima de reabertura.

Àquela altura, a loja se transformara em ponto de encontro de escritores e intelectuais da cena paulistana, uma lista que incluía de escritores como Lygia Fagundes Telles e Marcos Rey ao jurista Ives Gandra Martins. No boteco vizinho, os convivas garantiam as coxinhas. Herz era fiel depositário das garrafas de uísque, e também os guarnecia de copos, gelo e queijo.

Livrarias são lugares de convívio, repete Herz durante a conversa com o Valor, no mezanino do primeiro ponto comercial da avenida Paulista, a poucos metros, no mesmo Conjunto Nacional, da “megastore” aberta há sete anos. Nasceu como a maior livraria em área construída da America Latina, em três pisos, e investimento de R$ 6 milhões. O café e o teatro – cujo nome homenageia a mãe, Eva, que morreu em 2001 – incluem-se entre os serviços que contribuem para reunir os leitores e trazê-los de volta, como hábito. De frente para a “megastore”, há uma loja especializada em livros de arte. A poucos metros, outra, dedicada à cultura digital, Geek.Etc.Br, modelo inaugurado há dois anos para vender games, bonecos e quadrinhos. Somando todos os pontos no Conjunto Nacional, são 4.500 m2.

A expansão da rede até chegar a outros Estados, a segunda revolução, começara a se definir em 2000, com a instalaçãode uma filial no ShoppingVilla Lobos.

Foi quase por acaso que o livreiro passou a se dedicar naqueles dias à venda de CDs e DVDs. Na fase em que o shopping ainda estava sendo montado, faliu a loja que estaria ao lado para vender esses produtos. Chegou então a Herz a proposta de ficar com os dois espaços e incorporar os novos itens ao seu catálogo. Com área maior, passou também a ter um auditório. “Deu-se assim um fato inédito na história do país”, enfatiza, “uma livraria se tornou âncora de um shopping, papel quase sempre dos grandes magazines”.

A música representa cada vez menos nas vendas. Mas a experiência no Villa Lobos fez com que o movimento de expansão adquirisse outro fôlego. Antes, duas tentativas frustradas de manter filiais na capital paulista desanimaram por um tempo o livreiro. Na época, a matriz tinha 200 m2, enquanto as filiais, uma no metrô São Bento, outra numa universidade, cerca de 40 m2 cada uma. “O cliente queria justamente o que não havia lá, e o que havia lá não interessava. Assim compreendi que filial tem de ser igual à matriz, com mesmo espaço e quantidade de títulos, com pequenas diferenças conforme varia o estoque.”

Estoque que, no passado, era reposto também em idas ao exterior. Os importados nunca deixaram de ser dos grandes diferenciais – ainda correspondem a cerca de 30%. Um a um no catálogo das editoras nacionais, marcava os títulos que iria trazer para os leitores que, no Brasil, não queriam esperar até que fossem traduzidos.

As feiras de livros hoje são ocasiões para, sobretudo, bater papo, explica Herz. Por vezes se iniciam ou se concluem negócios – durante o ano, a comunicação nunca cessa. Sai com a agenda definida, da primeira à última, conversas marcadas previamente. “As perguntas são as mesmas que vocês [jornalistas] nos fazem. Está todo mundo atento, olhando, conversando. A resposta definitiva, não temos.” Herz voltou agora da London Book Fair, onde reencontrou executivos do mercado internacional do livro com quem estivera seis meses antes, em Frankfurt. Com a consolidação no mercado editorial – fusões e aquisições de grandes grupos internacionais, com repercussão no Brasil –, diz que as chances de reencontrar as mesmas pessoas têm diminuído.

A concentração no mercado editorial não é vista com pessimismo por Herz. Diz que pode trazer benefícios para o cliente, até recuo de preço. “É o ritmo da economia globalizada, no qual estamos inseridos. Não é característica do mercado editorial.” A maior preocupação não decorre do que vem de fora. Está relacionada à alta taxa de analfabetismo e, entre letrados, o baixo índice de leitura. “Você pergunta na admissão [para trabalhar na livraria] quem escreveu ‘Dom Casmurro’ e a maioria não sabe. Antes, os candidatos procuravam vaga dizendo que vinham porque gostavam de ler. Eu respondia: ‘Mas, aqui, você não vai ler’”, recorda, entre risos. Insiste dizendo que nenhuma tecnologia nova faz surgir novos leitores. Esse é um papel da escola.

À tecnologia nova, a Livraria Cultura passou a se dedicar desde 1994, quando abriu uma loja virtual, que lidera hoje vendas entre todas as filiais, com 22%. Quando a Amazon ainda se preparava para entrar no país, a rede brasileira se adiantou e anunciou uma parceria com a canadense Kobo, concorrente do Kindle da gigante americana. O digital representa 3% das vendas, percentual que têm relatado outros livreiros e editores. Herz não parece temer a Amazon. “Onde estão agora? Em Buenos Aires?”, brinca, minimizando a presença da rival. “Aqui eles concorrem com a mesma infraestrutura nossa: os mesmos aeroportos e empresas de carga, correios. É de igual para igual, com as mesmas dificuldades”, afirma Herz. “Creio que esse modelo de destruir o competidor morreu aqui.”

A tecnologia não muda o comportamento em ritmo veloz como se presume, ressalta Herz. No horizonte, vê, sim, transformação gigante, que não se refere exatamente ao livro físico ou ao mercado editorial. Diz respeito ao próprio varejo. “Não é só a livraria que vai se alterar. É todo tipo de loja. Essas mudanças já estão ocorrendo no mundo. Em Londres não há mais caixas nos supermercados.” Ainda não sabe o que virá, mas faz ponderações. As cidades estão piorando para o varejo, diz. No entanto o custo de abri-las em shoppings é muito alto. Lojas grandes como as que mantém, com até 3 mil m2, podem ser modelo finito. Não é improvável que o varejo se torne uma espécie de showroom dos fabricantes, com a aquisição feita em casa, virtualmente. “Muitas coisas deveremos repensar no futuro: tamanho de loja, mix de produtos, oferta de mais serviços.” Ante tantas possibilidades, a certeza de que chegou ao fim o tempo dos grandes estoques.

A roda, móvel que simboliza a loja, gira. A nova filial, a ser inaugurada entre este ano e o próximo, é em Porto Alegre. Será a segunda na capital gaúcha. O crescimento de toda a rede foi de 14% no ano passado. De filial a filial, esse percentual varia entre 10% e 15%, sem chegar a 20%. Não deixa de estar apreensivo com os números do país. “Nós estamos melhorando, mas não posso dizer que o Brasil está melhorando. A economia não está indo do jeito que se imaginava mesmo, para ninguém.”

Memória da livraria

Ao fim do expediente, Herz segue para outro edifício de arquitetura inconfundível da história paulista, o Copan – desenhado por Oscar Niemeyer –, no centro, sua residência desde meados da década de 1980, época em que se separou. Como gosta de altura, mora no último andar, onde lê numa poltrona estrategicamente posicionada de costas para a janela – por ora detém-se no volume “O Fim do Poder”, de Moisés Naím, editor-chefe da “Foreign Policy” – ou escuta jazz e música erudita. No terraço, ao ar livre, faz exercícios três vezes por semana acompanhado de um “personal trainer”. Até outro dia tinha um helicóptero que ele mesmo dirigia. Desistiu porque, depois de fazer as contas, constatou que era um brinquedo caro depois para as poucas horas de uso. Gosta de pescar em alto-mar. O maior peixe que fisgou até hoje pesava 47 kg, na Costa do Senegal.

A rotina não é mais tão atribulada como nos primeiros tempos. Ocupa o cargo de presidente do conselho administrativo, deixando o dia a dia para os filhos, Sérgio e Fábio. Está também na presidência do Cultura Artística, sucessor do bibliófilo José Mindlin. Um projeto que se desenha é o registro da memória da livraria, que deve realizar a quatro mãos ainda sem prazo de conclusão, tendo como “partner” Myriam Paglia Costa, com quem ficou o comando da Editora Cultura. “A pesquisa está sendo levantada já. É hora de contar essa história.”

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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico