Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Livraria virou brinde

Em poucos meses famílias jovens farão um programa na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi, em São Paulo. Largar os filhos na área livre projetada para eles, comer uma bela iguaria da chef Helena Rizzo do restaurante Mani instalado na livraria, escolher um DVD e olhar com curiosidade objetos cheios de folhas impressas que seus pais chamavam de livro. Ou tomar café debaixo da jabuticabeira no bar da Livraria da Vila da Rua Fradique Coutinho, carregar um DVD para casa enquanto passam os olhos naqueles tijolos de papel que sobraram na estante. Carregadores de celular, adaptadores e brinquedos vão encher livrarias de aeroportos, junto com presentinhos de última hora. Livros serão brindes.

É isso o que as livrarias do país, as que ainda não fecharam as portas, estão planejando para os próximos meses ou já colocaram o plano em prática – como a FNAC do bairro de Pinheiros, em São Paulo. Antes, os livros eram o consumo principal; hoje, o primeiro andar é ocupado com eletrônicos, o segundo foi tomado pela administração, e as encolhidas estantes de livros ocupam uma parede no andar de baixo tomado de CDs, DVDs. Até a área de discos clássicos foi para o espaço.

“É preciso atrair restaurantes de chefs renomados para se instalar entre as prateleiras de livros…”

“É necessário oferecer uma experiência interessante ao consumidor…”

“A rede de livrarias Nobel está incentivando seus parceiros a apostar cada vez menos nos livros…”

“…papelaria, material de escritório e até de chocolates a ítens para o presente de culpa de quem ficou fora…tudo para atrair o cliente para a livraria.”

Tudo isto estava na matéria “Sob pressão, livrarias reinventam seu negócio“, incluindo as livrarias mais famosas do país (Estado de S.Paulo, 5/05/2014).

Papel bíblia

Antigamente os brasileiros visitavam Buenos Aires e ficavam espantados por encontrar uma livraria em cada esquina, exatamente o número de boutiques que o Brasil acumulava no Rio e em São Paulo. Será por isso que vem da Argentina o melhor cinema da América Latina com diretores como Adolfo Aristarain, Juan Jose Campanella, Marcelo Piñero? Ou surgem escritores como Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, Adolfo Bioy Casares, Manuel Puig e poetas como Juan Guelman? Para citar alguns.

Os brasileiros babavam e babam, porque os argentinos continuam a apostar em livros, embora às vezes com cafés ao fundo como acontece com a livraria mais requintada da cidade, El Ateneo Grand Splendid, instalado em um antigo teatro de ópera e cinema. Mas o café fica ao fundo, os livros são a principal atração.

Parece Paris, comentavam, porque em Paris e Londres ainda é possível encontrar centro de abrigo para loucos por livros, pessoas que querem ser estimuladas na hora por títulos, capas. Infelizmente não mais em Nova York.

Hoje o barato é se sentir sozinho, brincar com o tablet e o kindle, namorar, transar, ler pelo meio o livro da moda – e já está lido. Cultura internet. O tablet é levinho e livro de papel bom é aquele que fica em pé.

Os especialistas recomendam aos pais que procuram escolas para os filhos uma ida física ao local de ensino. Eles devem verificar antes de matricular as crianças se a tal escola tem biblioteca arrumada, organizada. Tecnologia é só apoio, é meio, não fim. Ou alguém acredita que Henri Cartier-Bresson faria melhores fotos com uma câmera digital do que com a sua Leica 50mm que cabia na palma de sua mão, sem usar tripé, grande angular nem zoom? “A fotografia nada mudou desde a sua origem”, dizia Bresson sobre a arte de fotografar como um gato, sem incomodar, “exceto nos seus aspectos técnicos, os quais não são minha preocupação principal.”

Junto com Portugal, somos um país que não lê. Edição de clássicos em papel bíblia é coisa para o bibliófilo rastrear em sebos. Somos capazes de dar uma olhadinha em livros como OPapagaiode Flaubertdo inglês Julian Barnes, que fez sucesso nos anos 1990, sem ler o conto de Flaubert que o inspirou, “Un Coeur Simple”. O mesmo com O Erro de Descartes, do português Antonio Damásio, que contestava a tese “Meditações Metafísicas”onde o filósofo afirmava que só pela razão sobre as paixões o homem pode ser livre.

Paraíso de Borges

Não se pode negar que no ano passado a FNAC teve 1% de queda nas vendas e a Livraria Saraiva, prejuízo de R$ 16 milhões. E a Cultura, embora tenha faturado R$ 450 milhões, com crescimento superior a 10%, não se expandiu: sua expansão caiu pela metade se comparada com 2012. Pedro Hertz, presidente da Cultura, instalou três lindas livrarias no Rio. A do Fashion Mall em São Conrado sofre as consequências do trânsito atrapalhado por causa das obras da metrô para a Copa. A da Barra fica longe do centro. E a do Centro, no antigo Cinema Vitória, vive fechada por causa das passeatas.

Não é saudosismo do tempo em que os intelectuais faziam da Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor 110, no Rio, um ponto de encontro. É mais a solidão, o desamparo, a tristeza de ver que o brasileiro lê 1,8 livro por ano. E a curiosidade de saber se a coisa vai melhorar com os kindle, os livros virtuais, os brinquedinhos que transformam livro de papel em brinde.

Sócrates já temia que a qualidade da memória iria despencar com a invenção da escrita na Grécia – ele foi contra. E Roberta Shaffer, responsável pela aquisição do fabuloso acervo da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, se debruça em estudos sobre o impacto da leitura eletrônica no aprendizado. “Eles têm mostrado que as pessoas extraem mais informação ao ler livros físicos” (Veja, 19/12/2012).

A transição para a era digital é a revolução mais radical desde a invenção do alfabeto. No mercado americano, a Amazon já vende mais livros digitais do que os físicos. Mas a leitura digital nunca mais vai permitir uma das características que o argentino Alberto Manguel identificava no leitor ideal: escrever nas margens de um livro. E acrescenta: “Não se deve confundir o leitor ideal com o leitor virtual” (“Propuestas para definir al lector ideal”, El País, 29/11/2003).

O paraíso de Jorge Luis Borges, que seria feito não de jardins e fontes, mas de bibliotecas, vai acabar. O novo paraíso só vai valer a pena se vingar a aposta de editores e livreiros: que pelo menos os brasileiros passem a ler não mas 1,8 livros por ano, mas 18, inteiros.

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Norma Couri é jornalista