O incrível caso de um fã, historiador e jornalista que entrou para a História. Tanto na de seu biografado quanto na do Brasil contemporâneo, jogando mais combustível e argumentos na discussão pela mudança dos artigos 20 e 21 do Código Civil — aqueles que, entre outras coisas, permitem o veto a biografias não autorizadas. Essa é uma das conclusões proporcionada pela leitura das 474 páginas de “O reú e o rei”. Se o réu, Paulo Cesar de Araújo, perdeu a primeira batalha, em 2007, quando foi celebrado o acordo na Justiça que proibiu e retirou de circulação o livro sobre o cantor (“Roberto Carlos em detalhes”), logo ficou claro que a guerra estava longe de acabar. Abandonado pela editora Planeta, ainda naquele ano o autor contratou nova advogada para contestar a liminar que vetara a biografia, em processo que continuou e acabou envolvendo outros medalhões da MPB, nas trapalhadas protagonizadas no ano passado pelo grupo Procure Saber (com Gil, Caetano, Milton, Erasmo, Djavan…).
A publicidade em torno da biografia não autorizada só aumentou o interesse por “Roberto Carlos em detalhes”, vendido a peso de ouro em sebos, em versões piratas, disponibilizado na grande rede e, até pouco tempo, à venda em livrarias de Portugal — o próprio autor revela ter comprado o livro proibido pela internet. Nesse período, Paulo Cesar também se tornou uma celebridade no circuito intelectual, um símbolo na defesa pela liberdade de expressão.
Não eram necessários dons de pitonisa para imaginar que a atitude do cantor poderia se virar contra ele. Mal assessorado, vivendo numa redoma de sucesso e poder, Roberto disse mais de uma vez que “não leu e não gostou” da biografia que, mesmo não autorizada, era uma louvação à sua obra. Trechos dos autos do processo em suas diferentes instâncias reproduzidos no novo livro, assim como transcrições de entrevistas do artista e seus assessores e advogados mostram que quem fez o trabalho não entendeu o que leu ou usou de má fé. Agora, nesse novo round, o (ex)fã, historiador e escritor desnuda o Rei contando com minúcias e sem modéstia todo o processo de criação (15 anos de pesquisas e entrevistas) e o imbróglio judicial que prossegue. Ele lista muitos exemplos de citações equivocadas ou distorções feitas pela acusação e exibe provas de que tentou de todas as maneiras uma entrevista com o cantor.
Batalha desgastante
Como Paulo Cesar argumentou durante a disputa e reafirma em “O réu e o rei”, no âmbito pessoal, a biografia não revelou nada que já não fosse conhecido do público através de reportagens, entrevistas e mesmo composições para lá de confessionais — até o traumático acidente na infância é recordado em músicas como “O divã” e “Traumas”.
Além de esmiuçar o longo processo judicial, “O réu e o rei” volta a muitos momentos da biografia, agora de forma mais crítica. Traz ainda dados autobiográficos do garoto pobre de Vitória da Conquista, no interior baiano, que graças a muito esforço se formou em História e Jornalismo. Nos dois primeiros capítulos, relembra como, em 1965, aos 4 anos, foi conquistado por “Quero que vá tudo pro inferno”, um sucesso divisor de águas na carreira de Roberto Carlos mas que, nas últimas três décadas, foi banido de seu repertório pelo cada vez mais carola cantor. Nessas cem primeiras páginas, Paulo César volta a defender a obra do ídolo, mas acena mais com os números de vendagem do que com análises e argumentos estéticos, e também bate pesado nos críticos da grande imprensa que estariam surdos à genialidade do Rei. É a mesma tese de seu primeiro livro, “Eu não sou cachorro não” (2002), inédito mapeamento da grande produção brega produzida no Brasil entre os anos 1960 e 70, que teria sido tão perseguida pela Censura do período militar quanto a de luminares da MPB como Chico, Vandré, Gonzaguinha e companhia. A diferença é que agora Paulo Cesar não poupa a mesmice que tem marcado a carreira discográfica de Roberto Carlos desde fim dos anos 1980. Como escreve, se os clássicos lançados nas duas primeiras décadas garantem shows ainda arrebatadores, entre 1996 e 2014 o cantor só lançou um álbum com canções inéditas, o fracote “Pra sempre”, em 2003.
Nos capítulos sobre a pesquisa para a biografia (parte dela usada antes em “Eu não sou cachorro, não”), ele conta as muitas entrevistas com estrelas e produtores da MPB ou da Jovem Guarda, numa lista inaugurada, emblematicamente, por Tom Jobim, em 1990, e que incluiu Caetano, Gil, Chico, Simonal, Imperial, Erasmo… Nesse elenco também está o sonho de qualquer jornalista especializado em música, o mito João Gilberto, que acabou virando amigo de infância do autor. Para preservar a relação, PC não o entrevistou formalmente, mas, nos muitos papos telefônicos e nos encontros pessoais, como o de julho de 1993, quando foi convidado para acompanhar os shows de reabertura do Teatro Castro Alves, em Salvador, colheu preciosas histórias, incluindo a de que, em 1959, João Gilberto esteve na boate Plaza, em Copacabana, para assistir a um jovem cantor que o imitiva, nada menos que o iniciante Roberto Carlos.
O debate sobre as alterações no Código Civil prossegue, no momento, no Supremo Tribunal Federal e no Congresso. Portanto, fica a pergunta: será que Roberto Carlos vai se envolver em outra desgastante batalha nos tribunais para bisar a proibição? Fãs mais inteligentes do cantor e defensores da liberdade de expressão em geral torcem para que o lamentável show de obscurantismo pare por aqui.
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Antônio Carlos Miguel, do Globo