O passado ilumina o presente ou o ofusca? Em tempos intensos como os nossos, em que medida a memória nos ajuda a viver ou, ao contrário, nos serve de fardo? Perguntas difíceis surgem durante a leitura de “Tempos Extremos”, romance de estreia da prestigiada jornalista Míriam Leitão. Um romance delicado, escrito com leveza, que caminha na direção oposta do áspero noticiário econômico que Míriam é levada a manipular em seu cotidiano. Conta a história de Larissa, uma mulher sensível, que volta à fazenda Soledade de Sinhá, em Minas Gerais, casa da avó Maria José, de 88 anos, para passar um feriado. É um reencontro de família – que não só traz alegrias, mas abre também dolorosas feridas.
A história humana é pontuada por fantasmas – vultos indefinidos que surgem para Larissa, a protagonista, a meio caminho entre o sonho e o real. No fim das contas, Míriam mostra: a realidade é fluida e frágil e se esfarela se não a manipulamos com destemor e confiança. Leitora assídua de escritores como Mario Vargas Llosa, Virginia Woolf e Guimarães Rosa, Míriam sabe que a história está sempre infiltrada pela ficção – e que é a ficção (o sonho, materializado em projetos humanos) que a empurra para a frente. Seu romance – contrariando a tendência contemporânea das narrativas compactas – convoca à cena, em torno de Larissa, um grande número de personagens, o que lhe empresta a feição de um painel social.
Atingidos pelos eventos da história, os laços familiares se esgarçam e se rasgam. “Era sempre assim com Alice e Hélio, dois irmãos nunca suficientemente reconciliados da grande fratura.” Paira a sombra dos anos da ditadura militar, que extremou posições, tornando a convivência áspera e difícil. Drama paralelo ao experimentado nos tempos da escravidão. Surgem sinais, também, dos anos contemporâneos, com sua instabilidade e a fragilidade de suas representações. Derramando-se sobre o passado remoto – a escravatura – e o passado recente – a ditadura –, “Tempos Extremos” amplia, por fim, nossa perspectiva do presente. No fim das contas, é do presente sempre que se trata, das dificuldades de lidar com partes que não se encaixam, do sofrimento em manipular o inconciliável, duras experiências que significam viver. E também de nosso irreprimível desejo de voar para além do real.
História paradoxal
O que se destaca na escrita de Míriam é o hábil manejo dos personagens, múltiplos e complexos, e também a habilidade nos saltos no tempo. Tempo sempre intermediado por fantasmas, por fantasias vitoriosas ou não, por vislumbres. A linguagem do romance é coloquial: muitas conversas e muitos eventos, em uma prosa na qual o intimismo não exclui o sobrevoar sobre o grande manto da história. Larissa funciona, assim, como eixo em um espaço ficcional no qual os personagens vivem sentimentos paradoxais – e é do paradoxo que Míriam arranca a complexidade do homem. São as contradições que mostram a fragilidade, mas também a beleza da existência. Cemitérios, celas, grilhões, a figura triste dos escravos trazidos do além-mar, duras imagens de tempos ferozes aumentam em Larissa o sentimento de fratura. Ela não pode ter uma imagem nítida de si – ninguém tem. Tudo é quebrado e incompleto, e é a incompletude, aos poucos ela aprende, que dá sentido ao existir. Sonha em se tornar escritora, na esperança de que a ficção vede aquilo que se parte. É tudo o que nos resta: enfrentar pesadelos e fantasmas é o único caminho para nos aproximar de nós mesmos.
Não se pode falar em romance histórico, apesar da profusão de personagens e embora a história esteja presente todo o tempo. A força do particular se injeta no grande painel, desestabilizando-o e lhe emprestando cores singulares. A história se torna, assim, a alma secreta da intimidade. O romance é escrito, na verdade, em uma fissura do tempo. “O tempo parecia horizontal. Presente e passado convivendo, e ela [Larissa] entrara por alguma fissura. Imaginação? Tudo era real. É impossível.” A história particular da família que se reencontra se transforma, por força da ficção, em um naco da realidade brasileira. O que justifica a epígrafe tomada de Vargas Llosa: “Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa – e nós, seres mutilados, a quem foi imposta a dicotomia de ter uma única vida”.
Somos múltiplos – e os personagens de Míriam não só lutam entre si como oscilam dentro de si mesmos, guardando a precariedade que marca o existir. Como efeito dessa cisão, também a história se torna um grande “puzzle” no qual os eventos se encontram, mas nunca se complementam. É porque somos incompletos e temos tanto virtudes quanto fragilidades que tememos o passado. Passado que na verdade nunca passa e sobrevive em grandes segredos. “Vivos, mortos, isso é relativo. Posso ser mais viva do que você”, diz uma sombra que lhe aparece na noite. Chamada para viver um tempo que não lhe pertence, Larissa sente mistura de “carinho e aflição” pelos entes que lhe surgem. “Não entende a mágica que a transportou a um mundo antes do seu tempo.” Foi escolhida para evitar o pior, é transportada para o passado em viagem que se parece com a busca de salvação. Ela tem uma missão a cumprir. Não há salvação – mas o romance de Míriam nos mostra que o passado é sempre o manto que nos aconchega. Sobre ele caminhamos. Dele somos feitos.
“Nunca vou saber toda a verdade”, lamenta-se Larissa. É obrigada a viver com “retalhos de informação e essa saudade visceral que nascera com ela”. Difícil tarefa para a jornalista: somos obrigados a partilhar e a aceitar nossa incompletude. A história – que Míriam persegue com afinco – é paradoxal: ela nos engrandece, mas também nos apequena. Nos salva, mas também condena. Ela nos confere, enfim, um lugar para viver.
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José Castello, para o Valor Econômico