Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sabedoria com Z

Antes que lhe caia o queixo – pois é de cair o queixo o livro que você tem nas mãos –, prepare-se para sucumbir ao feio sentimento da inveja. Inveja que, no caso, tem o atenuante de ser benigna, e cujo objeto é o camarada que pôs no papel cada uma das palavras reunidas neste volume felizmente alentado.

Por que inveja? Falo por mim, mas quem sabe por você também: porque o Zuza Homem de Mello, esse danado, esteve sempre no lugar certo, e na hora certa, vendo e ouvindo o que cada um de nós adoraria ter tido a oportunidade de ver e ouvir. Ainda bem que não guardou só para ele o visto e o ouvido!

Pode ser, dirá você, que eu esteja exagerando, risco a que um prefaciador apaixonado tantas vezes pode sucumbir. Então vamos aos fatos, ao móvel de minha irremediável e justificada inveja, fatos esses que são fáceis de colher, meio ao acaso, em qualquer ponto das páginas que se seguem.

Saiba, por exemplo, que aos 24 anos de idade o Zuza ocupava uma das cadeiras do Carnegie Hall, em Nova York, naquela noite de setembro de 1957 em que o JATP, o Jazz at The Philharmonic, pôs em cena uns camaradas chamados Oscar Peterson, Coleman Hawkins, Lester Young e Stan Getz, além das feras do Modern Jazz Quartet. Poucas semanas depois, olha o Zuza no mesmo cenário, dessa vez todo olhos & ouvidos para Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, para Billie Holiday e para um promissor e ainda escassamente conhecido cantor e pianista de nome Ray Charles. Foi naquela noitada de 29 de novembro de 1957, aliás, que o Zuza viu pela primeira vez se apresentar um tal de Chet Baker.

Outro músico que por essa época lhe chamou a atenção: um jovem sax-tenor, “calado e não muito expansivo”, integrante do quarteto de Thelonious Monk depois de haver brilhado no quinteto de Miles Davis, talentoso o bastante para criar no crítico brasileiro “a firme impressão” de que poderia se tornar “um magnífico músico de jazz”. Nome do cara: John Coltrane.

Se você vê deslumbramento nas linhas acima, ponha, insisto, na conta exclusiva do prefaciador, já que o Zuza, profissional calejado, nunca foi de se embevecer ao ponto de sacrificar o rigor. E não porque tenha, hoje, quase seis décadas como repórter e crítico musical. Ele já era assim lá nos começos, como se pode constatar na leitura de seus primeiros escritos na imprensa, vários deles enviados em 1957 e 1958 de Nova York – cidade onde o jovem baixista profissional da noite paulistana, deixando para trás um curso de engenharia, tinha ido estudar musicologia na Juilliard School of Music, período em que frequentou também a não menos célebre School of Jazz, em Tanglewood.

Foi ótima ideia do Zuza conservar e reunir aqui uma seleta de seus amarelecidos recortes nova-iorquinos, e tantos outros acumulados a partir de então, ao longo de décadas e igualmente submetidos, agora, à peneira da maturidade e a um cuidadoso trabalho de revisão. Sim, pois o ouro recolhido no caminho foi ainda mais refinado.

Não estou autorizado a falar por ele, claro, mas posso afirmar que o Zuza, muito à margem da vaidade e nostalgia de escribas que se sentem autores das tábuas da lei, viu excelentes razões para sacar velhos textos de seus arquivos. Constate você mesmo que todos eles conservam o viço e, sem rugas, são capazes, ainda, de suscitar leitura atenta e proveitosa. Sem falar, é claro, na óbvia importância documental que têm.

Repórter e crítico

Quem escreve regularmente na imprensa se dá conta às vezes de que este ou aquele escrito, ainda que produzido no sufoco dos deadlines das redações, mereceria um pouco mais de sobrevida nas bancas de jornais e revistas, antes de cumprir, independentemente do valor jornalístico, histórico e até literário que possa ter, o inglório destino de embrulhar legume ou peixe ali no sacolão.

Para felicidade geral, Zuza fez como o cronista e romancista Fernando Sabino (um aplicado baterista amador de jazz, sabia?), quando, já próximo dos 80 anos, decidiu mergulhar no cafarnaum de seus recortes de imprensa para de lá trazer o que ainda pulsasse qualidade, reunindo o melhor desses achados nas seiscentas e tantas páginas do delicioso Livro aberto.

O que se dá em boas coletâneas, como a de Sabino e esta de Zuza Homem de Mello, é que, postos lado a lado, textos de qualidade não só se desincumbem a contento, cada um deles, como, se bem justapostos, trabalham uns pelos outros – se você me permite o lugar-comum: como as pedrinhas bonitas que, somadas, irão formar painel ainda mais belo.

Uma simples passada de olhos pelo sumário já permite ver o quanto é rico e imponente o mosaico montado pelo Zuza – e, coisa nem sempre encontrável entre os que se ocupam da crítica de qualquer arte, isento de sectarismo e preconceitos. Percorra as sete seções em que se divide Música com Z e diga se há algum nome verdadeiramente grande da música, seja ela brasileira ou de outros cantos do mundo, que não tenha sido aqui contemplado – de Cartola a Charles Mingus, de Tom Jobim a Duke Ellington, de Carmen Miranda a Carmen McRae, de Maria Bethânia a Alberta Hunter, de Milton Nascimento a Charles Aznavour, de João Gilberto a John Coltrane, de Jackson do Pandeiro a Dexter Gordon, de Gal a Diana Ross, de Chico, Gil e Caetano a quem mais possa você imaginar de bom.

O rol dos norte-americanos, por exemplo, está longe de esgotar-se nos gigantes aí acima mencionados, nem se esgotará nos que serão adiante enumerados. Entre eles, Willie Nelson, que o Zuza viu cantar em Las Vegas, no ano de 1982, e Diana Ross, no Valby-Hallen de Copenhague, em 1985. Mais perto de nós, Frank Sinatra e Alberta Hunter no mitológico Bar 150, do Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo – casa onde ecoaram também o piano e a voz daquele que o nosso crítico tem na conta de “o mais irresistível saloon singer de todos todos os tempos”, ele mesmo, Bobby Short.

E eis que cabe aqui um parêntese não apenas musical: para Zuza Homem de Mello, o hoje extinto 150 veio a tornar-se ainda mais inolvidável ao cabo da noitada de setembro de 1983 em que, para comemorar 50 anos de vida, ele reuniu ali igual número de casais amigos. Num fecho apoteótico, foi ao som de “Happy Birthday to You”, na interpretação de Bobby Short, que o aniversariante soprou as velas.

E como esquecer a fulgurante passagem pelo 150, no mesmo ano, da “maior cantora de jazz de seu tempo”? – Betty Carter, claro. Trata-se, também neste caso, de opinião solidamente sedimentada, pois Zuza a conhecia desde fevereiro de 1958, de uma jam session do Birdland, em Nova York. Haveria de reencontrá-la no início da década de 60, numa de suas incontáveis revisitas à cidade, dessa vez no Apollo Theatre, dentro de um programa luxuoso ao ponto de incluir também Ray Charles. “No palco, a figura de Betty não ajudava muito – uma magricela desengonçada sem charme algum”, recordará Zuza anos depois. “Provavelmente seria dispensada de cara por um produtor de megashows. Todavia, sua voz doce caía de encomenda para contrastar com a voz meio rouca, com os gemidos e lamentos que vinham do fundo da alma do gênio.”

A profusão de detalhes, neste e em muitos outros casos, se deve não apenas à boa memória de Zuza Homem de Mello como também à excelente iniciativa de acrescentar, no pé de vários dos textos deste livro, notas redigidas em 2014 com o objetivo de atualizar e enriquecer antigos escritos, e até para humildemente arrolar supostos deslizes imputáveis ao verdor de um profissional em formação.

Sempre oportunas e interessantes, as notas supervenientes trazem às vezes ao leitor de hoje notícias menos boas – ou mesmo francamente lamentáveis: ao repassar, 55 anos depois, reportagens de julho de 1958 em que mapeou templos do jazz em Nova York, Zuza Homem de Mello nos informa que de todos eles apenas um, o Village Vanguard, na 7ª Avenida, seguia atuante, sendo que o outrora glorioso Birdland, agora em outro endereço, se desvirtuou tanto que se converteu em casa de shows de striptease.

Lembrança puxa lembrança – e as saborosas notas de Zuza volta e meia se encompridam, do que ninguém vai reclamar, ao contrário, pois tudo é sempre muito pertinente e bom de ler. No caso do cantor Emílio Santiago, por exemplo, o post scriptum de 2014 resultou bem maior que o comentário que o suscitou em 1979. Tantos anos depois, o crítico pôde nos dar o que na breve resenha de um disco não teria cabimento. “Fiquei literalmente chapado quando assisti Emílio Santiago pela primeira vez, num inesquecível show com Alcione, no Canecão do Rio de Janeiro”, anotou ele. “Os solos de cada um eram de assustar, em dupla suas vozes enchiam o espaço em alto nível e ainda havia como bônus os surpreendentes solos de trompete da cantora.”

Emílio e Alcione são dois na imensa, completíssima galeria dos bons intérpretes e compositores cuja arte ocupa Zuza Homem de Mello nas páginas deste Música com Z, distribuídos em sete bem montadas divisões. Uma delas, a parte V, intitulada “A pedidos”, nos presta o imenso favor de recolher textos que jaziam espalhados por encartes e contracapas de discos, programas de espetáculos musicais e até releases escritos para informação das redações de revistas e jornais, tudo isso de comprovada resistência ao tempo.

Outra seção, abrindo o livro e o apetite do leitor, tem por tema canções e momentos que, para o Zuza e tantos de nós, são inesquecíveis – pense em joias como “As Time Goes By”, “Cidade maravilhosa” ou “Tenderly”. Todo um bloco do livro é dedicado a uma seleta de textos produzidos pelo repórter praticamente desde aquele 26 de setembro de 1956 em que ele, aos 23 anos, fez sua estreia no ofício ao cobrir, morra de inveja, a passagem da orquestra de Dizzy Gillespie pelo Teatro Santana, de São Paulo.

Como repórter ou crítico, Zuza foi J. E. (de José Eduardo) Homem de Mello até abril de 1978, quando, ao iniciar sua colaboração no jornal O Estado de S. Paulo, teve a ótima ideia de usar como profissional o apelido que traz da infância.

Figura & figuraça

Entrevistador capaz de extrair o melhor que um entrevistado possa render (no rádio, inclusive, durante os dez anos em que manteve na Jovem Pan, de São Paulo, de segunda a sexta-feira, o Programa do Zuza), nosso crítico teve à sua frente uma infinidade de grandes nomes da música, brasileira e estrangeira, duas dezenas deles reunidos aqui numa seção em que uma entrevista até agora inédita de Charles Mingus está longe de ser o único pitéu. Alguns deles, quem sabe, poderiam estar também na seção que fecha Música com Z, reservada a artistas que, mais do que “figuras”, são “figuraças”.

Mas não me peça, por favor, que esclareça a diferença entre uma coisa e outra. Figura & figuraça que é, o Zuza vai explicar com muito mais competência. Depois, tem isto: como aquele entusiástico mestre de cerimônias que se estendeu além da conta, fazendo brotar na sala um burburinho de impaciência, este prefaciador por fim se manca. Chega de tentar apresentar o que disso não precisa, vamos logo ao que interessa!

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O livro

Música com Z reúne 140 textos do jornalista, crítico, pesquisador, apresentador de rádio, produtor e ex-contrabaixista Zuza Homem de Mello, um dos maiores conhecedores de música em nosso país, escritos ao longo de toda a sua carreira – das primeiras reportagens enviadas de Nova York, em 1957, até um artigo sobre os centenários de Caymmi, Lupicinio Rodrigues e Aracy de Almeida publicado em 2014.

Focalizando principalmente o jazz, a música popular brasileira e a norte-americana, o livro traz as experiências de um crítico que conviveu com vários dos artistas abordados, assistiu pessoalmente às suas apresentações, entrevistou-os e até produziu seus discos e shows. Estamos, portanto, diante do testemunho de um autor que vive de muito perto a cena musical. Com a generosidade e a paixão que lhe são características, Zuza nos transporta por meio de seus escritos não apenas aos palcos, mas também aos bastidores, camarins e estúdios que frequentou, compartilhando conosco o calor e as revelações de cada um desses momentos.

Uma entrevista inédita com Charles Mingus, o relato de uma apresentação surpresa de João Gilberto, um encontro com Chet Baker, a análise da produção de Noel Rosa, a história da canção “As Times Goes By”, a primeira entrevista de Itamar Assumpção, um estudo sobre a carreira de Frank Sinatra, o último show de Elis Regina, um perfil de Miles Davis… Não é pouco o que o leitor poderá aprender e saborear nestas páginas, redigidas por alguém que, como lembra Humberto Werneck no prefácio, “esteve sempre no lugar certo, e na hora certa, vendo e ouvindo o que cada um de nós adoraria ter tido a oportunidade de ver e ouvir”.

Sobre o autor

Zuza Homem de Mello nasceu em São Paulo, em 1933. Inicia-se no jornalismo em 1956, assinando uma coluna de jazz semanal para a Folha da Noite. Após um período de estudos em Nova York, volta ao Brasil e ingressa na TV Record, onde permanece por cerca de dez anos trabalhando como engenheiro de som e atuando como booker na contratação de atrações internacionais. Entre 1977 e 1988 produz e apresenta o premiado Programa do Zuza, na Rádio Jovem Pan AM, e faz crítica de música popular para O Estado de S. Paulo. Trabalha também como diretor artístico de shows e festivais e produz discos de Jacob do Bandolim e Elis Regina, entre outros. Integra a equipe do Festival de Jazz de São Paulo (1978 e 1980), sendo curador do Free Jazz Festival desde sua primeira edição, em 1985, e de seus sucessores, Tim Festival e BMW Jazz Festival. É autor dos livros Música popular brasileira cantada e contada… (Melhoramentos, 1976, relançado pela WMF Martins Fontes em 2008 com o título Eis aqui os bossa-nova), A canção no tempo, dois volumes em coautoria com Jairo Severiano (Editora 34, 1997-98), João Gilberto (Publifolha, 2001), A Era dos Festivais (Editora 34, 2003) e Música nas veias (Editora 34, 2007).

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Humberto Werneck é jornalista