O velho Graça voltou. Celebrado pela Flip no ano passado; ao centro de uma caixa de DVDs recém-lançada pelo Instituto Moreira Salles; no filme de Sylvio Back programado para segunda-feira, no programa de nosso festival no Canal Brasil, eis que foi anunciado durante o último Festival de Cannes a refilmagem por José Eduardo Belmonte de “Memórias do Cárcere”, já soberbamente adaptado em 1984 por Nelson Pereira dos Santos.
O retorno a Graciliano Ramos (1892-1953) levou-me a finalmente ler sua biografia definitiva, “O Velho Graça“ (Boitempo, 358 págs, R$ 52), relançada em 2012 por Dênis de Moraes em versão expandida do original publicado em 1992 (ver “Graciliano, literatura e resistência“). Longe de ser especialista, não lembro de uma reconstituição de vida de autor brasileiro de impacto similar.
A estreia em TV do filme de Back, “O Universo Graciliano” (2013), torna oportuna uma visão comparativa, ainda que com isso tenha de quebrar a norma de não comentar aqui os documentários que semanalmente programo e apresento no Canal Brasil. Trata-se afinal de um retrato documental pioneiro, sobre um autor adaptado com raríssima felicidade pelo cinema ficcional brasileiro.
A caixa do IMS (três DVDs, R$ 111,90) nos permite ver ou rever as versões de Nelson Pereira dos Santos para “Vidas Secas” (1964) e “Memórias do Cárcere” e a de Leon Hirszman (1937-1987) para “São Bernardo” (1972). Cada qual a seu modo, até pelo fato de serem naturalmente distintas mesmo as abordagens de Nelson Pereira, lá está a essência do estilo de Graciliano, naquilo que Antonio Candido, escrevendo sobre “Vidas Secas”, definiu como “prosa admirável, que, reduzida também ao mínimo, parece espelhar no laconismo e na elipse a humanidade espoliada dos personagens”.
Estilhaços de histórias
O livro de Moraes e o documentário de Back partilham a ordenação cronológica, a recusa ao tom hagiográfico e alguns personagens ligados à vida de Graciliano, notadamente a filha Luiza, companheiros de PCB como Armênio Guedes e Oscar Niemeyer (1907-2012) e, sobretudo, o também camarada, advogado e amigo próximo Paulo Mercadante (1923-2013). Distinguem-nos, texto e filme, sobretudo a opção narrativa: histórico-biográfica em Moraes, memorialística e anedótica em Back.
A chave para o triunfo de “O Velho Graça” foi certeiramente definida no prefácio à primeira edição de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), ao destacar ser essa “uma biografia que não é biografista”. Ele mesmo vai ao ponto: “Em nenhum momento Dênis de Moraes utiliza o vasto material biográfico de que dispõe para tentar explicar, através dele, o universo estético de Graciliano”.
O livro recusa-se a projetar as vicissitudes do autor, e foram gigantescas, nos perfis de protagonistas como João Valério, de “Caetés”; Paulo Honório, de “São Bernardo”; Luis da Silva, de “Angústia”; ou Fabiano, de “Vidas Secas”. Fiel apenas a si mesmo, mesmo enfrentando no pós-guerra as pressões partidárias pela adoção “realismo socialista” “zdanoviano” (como relata minuciosamente Moraes), Graciliano bem delimitou em sua obra o que Antonio Candido sintetizou com o brilho habitual no título de seu volume de ensaios sobre o escritor, “ficção” (isso é, seus quatro romances) e “confissão” (seus volumes autobiográficos, “Infância” e os póstumos “Memórias do Cárcere” e “Viagem”).
Nascido em paralelo a um projeto ainda não realizado de adaptação de “Angústia”, por Back, “O Universo Graciliano” busca revelar, como afirmou o cineasta, “o incrível imaginário sobrevivente em torno dele”. Para captá-lo, Back lança mão de material de arquivo, menos farto do que o merecido, cenas de filme de época e principalmente da articulação segura de novos depoimentos de familiares, amigos e colegas de escrita e da política. O resultado é uma autêntica biografia oral de Graciliano, das origens alagoanas à maturidade já como escritor no Rio.
Assim, enquanto Moraes nos apresenta um Graciliano mergulhado na história, Back revela-o pelos estilhaços das histórias. Se, ao contrário dos filmes de ficção, o documentário brasileiro tinha uma dívida para com o velho Graça, ele cuidou de resgatá-la. Da mesma forma como, depois de ler Dênis de Moraes, é difícil pensar em engatar em outra leitura que não os livros de Graciliano – e, agora, estes nunca mais serão os mesmos.
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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.