Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O cineasta e o quadrinista

“O novo filme de Ettore Scola é um gibi!”, exclamaram publicações italianas. Chega nesta quinta-feira [12/6], às livrarias da Itália uma história em quadrinhos diferente. Un Drago a Forma di Nuvola (Um Dragão em Forma de Nuvem) é um roteiro de filme inédito de Scola, que o veterano cineasta de 83 anos desistiu de levar ao cinema e, em vez disso, procurou um quadrinista, Ivo Milazzo (artista dos clássicos Ken Parker e Nick Raider) para desenhá-lo. Milazzo fez aquarelas magníficas para uma história original profundamente literária, a história do livreiro Pierre, que vive uma existência tediosamente rotineira e solitária em Paris nas imediações da Île de France, onde mantém a livraria L’Encrier et la Plume (O Tinteiro e a Pena). Mora na parte de cima de sua livraria e se bate com os clientes de sempre.

Scola (que venceu Berlim com O Baile e Cannes com Feios, Sujos e Malvados), como Fellini, tem sido ao longo da vida um grande fã dos fumetti (quadrinhos, em italiano). Foi, inclusive, caricaturista da revista semanal Marco Aurélio em fins dos anos 1940.

O mais curioso é o seguinte: o álbum chegou a ser oferecido a editoras brasileiras, durante passagem recente de Ivo Milazzo pela Bienal de Quadrinhos de Belo Horizonte. O italiano não obteve resposta de nenhuma editora nativa.

Bibliófilo talentoso, Pierre mantém um segredo na parte de cima de sua livraria, encravada no paraíso dos “bouquinistes”: vive ali com sua filha, Albertine, tetraplégica desde a infância, para quem lê livros.

No ano passado, o desenhista Ivo Milazzo procurou editoras brasileiras para tentar publicar aqui no País seu trabalho com o cineasta Ettore Scola. Não obteve sucesso. “Storia realizzata insieme a Ettore Scola da un suo film non realizzato per sua decisione personale” (História realizada junto com Ettore Scola de um filme seu não realizado por sua decisão pessoal), escreveu o artista, no arquivo PDF que enviou com o romance gráfico.

Não foi possível saber qual teria sido o motivo da decisão pessoal de Scola de não filmar a história, mas é uma trama envolvente. A filha tetraplégica que o livreiro Pierre (que é a cara do Gérard Depardieu) cria em segredo, Albertine, embora esta não ande, não se mova e não fale, é uma das vozes narrativas da história – e uma voz sarcástica e intelectualmente ultrassofisticada. Esse é o segredo da trama.

Albertine vê o pai às voltas com as dificuldades de mantê-la e analisa tudo sem autoindulgência. Alimentada com um acervo literário inesgotável desde a infância, torna-se irônica e brilhante. Passa as tardes ouvindo a Norma, de Bellini, com a soprano Maria Callas. “Para Baudelaire, o mundo seria um grande hospital, em que cada paciente estaria possuído do desejo de mudar de leito. Um quer ficar mais perto da estufa, outro quer se posicionar perto da janela. Ninguém se sente bem onde está, não importa onde esteja, porque o melhor está sempre em outro lugar. Eu sou um paciente sem desejos, deles se ocupa meu pai. Ele me leva à frente da estufa ou até a janela, prevendo cada desejo meu”, pensa Albertine.

Nova história

A vida de Pierre e Albertine segue sem solavancos, em sua plácida rotina literária, entre Noites Brancas, de Dostoievski, e a luneta na qual o pai lhe mostra a imensidão do universo e ensina o nome das estrelas e nebulosas. Até que entra na vida de Pierre o incontrolável, sob o nome e os cachos de Y olande. Eles se apaixonam e Yolande não compreende o apego atávico de Pierre à sua rotina – ele jamais se afasta demais da livraria. A filha, mais inteligente do que ele pensa, saca tudo – os sinais da mudança estão nos trechos dos livros que Pierre lê, e também na falsificação de alguns deles.

Ao citar Jules Renard, “la volontarie coincidenze dello scrivere” (“a coincidência voluntária do escrever”), Albertine observa: “Atribui a Jules Renard um monte de coisas que ele mesmo inventa”.

Um dia, para namorar com Yolande, Pierre sai e deixa o negócio a cargo de um cliente, Tony, mas quando volta este vendeu um exemplar raro de Madame Bovary, uma primeira edição, de 1850, por 20 euros.

A relação de grandes cineastas com os quadrinhos é bem conhecida. Alain Resnais sempre amou o gênero. O desenhista italiano Milo Manara foi parceiro de Federico Fellini no álbum Viagem a Tulum (Globo, 1992). Quando lhe perguntaram se tinha estado em Tulum, ruína maia no México, para fazer as edificações que retratou no trabalho, Manara disse: “Infelizmente, nunca fui a Tulum. Toda essa viagem foi feita pelo Fellini, que tinha uma forte memória visual, e que me preparou cenários muito completos. Ele desenhava também, fazia storyboards. Tínhamos um acordo implícito: ele era o cineasta, e eu era seu ‘câmera”.

Ettore Scola tem antecedentes no meio gráfico. Foi dele o prefácio de Bobo. Le Storie (Ed. Riuniti 1988), de Sergio Staino, e participou da mostra Disegni, na Accademia di Francia, em Roma, no ano de 2009, uma exposição que reunia seus esquetes, vinhetas, caricaturas e desenhos cenográficos.

O editor resumiu assim a aventura de Un Drago a Forma di Nuvola: “Quando um grande cineasta decide dirigir um grande desenhista, nasce um filme em papel que vai desbancar os vossos corações sem passar pela bilheteria”.

Ivo Milazzo é um velho conhecido dos brasileiros. Esteve diversas vezes no País e é cultuado aqui por conta do seu trabalho em Ken Parker, em associação com o argumentista Giancarlo Berardi.

O personagem só foi desenhado até o início dos anos 1980 no Brasil, e deixou de ser produzido. Mas, em novembro, durante o 8.° Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, o artista italiano revelou que pretende voltar a desenhar o herói. Ele e Berardi preparam uma nova história para ser publicada no próximo ano (o grupo Mondadori também vai relançar toda a coleção dos anos 1970, em cores).

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Jotabê Medeiros, do Estado de S.Paulo