Com 677 páginas de saudades e sonhos, “Vida de cinema – Antes, durante e depois do Cinema Novo” (Objetiva), autobiografia de Cacá Diegues que chega hoje às livrarias, jamais teria saído do papel se o diretor alagoano tivesse obedecido a um conselho de sua tia Amélia. Foi de mãos dadas a ela, quando era um menino de 5 anos, que o realizador de sucessos como “Bye bye Brasil” (1979) e “Chuvas de verão” (1978) pisou em uma sala de exibição pela primeira vez: o cine São Luiz, em Maceió. E, embora não lembre que filme viu naquele dia, o cineasta, hoje com 74 anos, nunca se esqueceu das palavras de Amélia, que ele, sabiamente, não acatou: “Não bote a mão na tela, menino, que ela fica lá presa pelo resto da vida”. A profecia se cumpriu: há 52 anos, Cacá faz da atividade cinematográfica sua profissão, tendo dirigido 36 filmes, dos quais 20 são longas. E o 21º já está em preparação: “O grande circo místico”, com Vincent Cassel e Jesuíta Barbosa.
– Levei seis anos para concluir esse livro, que é meu almanaque sobre o Brasil. Um almanaque capaz de traduzir a esperança que ainda sinto em relação ao país. Tenho imensas e numerosas queixas, mas seria impertinente não reconhecer que, nestes últimos 20 anos, o Brasil melhorou. Não tenho pessimismo. O pessimismo é conservador, porque pretende que a gente se esforce para não mudar. E, em 74 anos, mudei muito. Por isso, existem vários Cacás em “Vida de cinema”. E que bom é mudar, pois a coerência não é uma virtude artística – diz o diretor, que começa a filmar “O grande circo místico” no dia 22 de setembro, numa coprodução com Portugal e França, com locações em Lisboa e em Minas e roteiro inspirado no poema homônimo de Jorge de Lima (1895-1953), em coautoria com George Moura.
Com a cabeça ocupada pela escolha de um elenco internacional, o diretor vai se dedicar ao lançamento de “Vida de cinema” em breve. A noite de autógrafos será em 12 de agosto, às 19h, na Travessa do Leblon. Antes, no dia 1º de agosto, o cineasta participa de um debate sobre a obra na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). E, no dia seguinte, ainda na Flip, ministra uma oficina sobre linguagem cinematográfica com o documentarista João Moreira Salles. Em Paraty, Cacá vai comentar a decisão de escrever o livro substituindo capítulos por verbetes, que podem ser lidos aleatoriamente, formando um mosaico de sua memória, da história da produção audiovisual e das contradições nacionais em geral.
A publicação começa seus relatos em 19 de maio de 1940, dia em que o diretor nasceu, em Maceió. Dali, o livro segue para a mudança de sua família para o Rio, em 1946. É na cidade que ele irá vivenciar o patriotismo pela primeira vez, com dor, ao chorar a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950, ouvindo o jogo pelo rádio. Sem melancolia e com bom humor, “Vida de cinema” relembra as peripécias de Cacá ainda menino e arranca risos ao reconstituir o dia em que ensaiou fazer uma fotonovela baseada em “Romeu e Julieta” com seus irmãos e a empregada.
– (Quando morava em Botafogo,) o morro Dona Marta dominava a paisagem. Joguei muita bola com os meninos de lá e nunca os entendi como diferentes. Com a idade, fui compreendendo que a cultura e a antropologia brasileiras eram formadas pela riqueza das misturas. Não acredito em raças, acredito em culturas e no valor da mestiçagem entre elas.
Decisão explicada
No rol de relatos de Cacá, também articulista do GLOBO, amontoam-se causos como os de sua amizade com a diva francesa Jeanne Moreau no set de “Joanna Francesa” (1973), em Maceió, e narrativas anedóticas ligadas às suas incursões boêmias pelo Beco das Garrafas. O romantismo também aparece, conforme Cacá revê seus primeiros amores e seus casamentos (com a cantora Nara Leão e a produtora Renata Almeida Magalhães, sua companheira há 33 anos). Relendo a própria história, o cineasta lembra que muitos sonhos de outrora permanecem vivos:
– Não sou contra ilusões, algumas nos ajudam a viver melhor. Se a realidade não corresponder à nossa boa ilusão, pior para a realidade. Meu sonho continua sendo fazer meus filmes e viver num país mais justo e menos miserável, com uma economia de cinema vigorosa.
Movido pelo sonho de um cinema imbuído de brasilidade, ele se tornou amigo de figuras que redefiniram a maneira de se fazer filmes no país, como o produtor Luiz Carlos Barreto e os diretores Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cezar Saraceni, Ruy Guerra e um vulcão chamado Glauber Rocha. Num parágrafo do livro, Cacá explica a influência da “alegria glauberiana”: “Segundo Nelson, respondendo a uma pergunta sobre o que era o movimento: ‘O Cinema Novo era quando Glauber chegava da Bahia’”.
– Sinto falta da convivência com os diretores do Cinema Novo e de nossos dias e noites de discussões intermináveis sobre cinema, cultura e política. Acho que nunca fui tão feliz em minha vida de cineasta. Mas não tenho saudades do Rio daquela época, tenho saudade de mim, de minha juventude, da energia que temos quando somos jovens – diz o diretor, otimista em relação à produção atual. – Quando comecei, fazíamos no Brasil dez, 12 filmes por ano. Hoje, nossa produção é de cerca de 150 filmes anuais e uma de suas principais características é a diversidade. Mas é preciso criar condições de distribuição para que esses filmes tenham presença digna no mercado.
A colagem de recordações em “Vida de cinema” de Cacá termina em 1995, quando ele relembra a produção de “Tieta do Agreste” (1996). Ficaram de fora os longas que ele lançou na Retomada, suas recentes experiências como jurado em Cannes (em 2010 e 2012), suas incursões como diretor de documentários e sua relação como produtor de jovens de periferia em “5xFavela, agora por nós mesmos” (2010). A decisão de parar em meados dos 1990 é explicada no posfácio: “A partir daí, tudo se passou há menos de 20 anos: é muito pouco tempo para se afirmar tudo o que aconteceu”.
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Rodrigo Fonseca, para O Globo