Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Livro desfaz mitos sobre os últimos dias de Jango

A estante dos livros sobre o golpe de 64 ganha mais um volume esta noite, com o lançamento das memórias de um dos personagens dos últimos dias do presidente João Goulart no poder: José Serra, à época presidente da poderosa União Nacional dos Estudantes (UNE). Serra era um interlocutor de presidentes. Com a deposição de Jango, amargou um exílio de 13 anos. Cinquenta Anos Esta Noite – O Golpe, a Ditadura e o Exílio, que está sendo lançado pela editora Record, é uma narrativa autobiográfica desse período.

São as memórias de Serra sobre o período, o ambiente que o cercava e o protagonismo da UNE numa época em que o país tinha 500 universidades. Em texto escorreito e agradável, Serra descreve o ambiente que o cercava naqueles idos de março de 1964, o refúgio na embaixada da Bolívia e episódios dignos de um thriller político, como a volta ao país, clandestino ainda durante o período de 14 anos em que esteve ausente: já próximo da fronteira brasileira, a caminho do hotel, Serra esqueceu os documentos falsos que portava no banco de um táxi e teve que sair em desabalada carreira atrás do carro, quando notou que os papéis tinham ficado para trás.

Há outras passagens de puro suspense, como a saída da prisão em Santiago do Chile, após o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, em 1971. Ou quando o avião pousou em sua volta definitiva ao país, ainda durante o regime militar, e ouviu o aviso transmitido pelo alto-falante: “Pedimos ao passageiro José Serra que permaneça no seu assento depois de a aeronave estacionar.” O SNI, a polícia política do regime, o aguardava.

No exílio, Serra convive com outros asilados, testemunha as discussões sobre os rumos que a esquerda deveria tomar – percebe-se como a opção pela luta armada se insinua nos corações e mentes –, o desencanto com o socialismo. “Eu decidi, a partir de um certo momento, que eu queria ser o político mais bem preparado da minha geração. Eu investi no preparo.” Serra voltou ao país antes da promulgação da lei da anistia, quando a pena à qual fora sentenciado pela Justiça Militar prescrevera.

A partir daí recomeça a construção da carreira do homem público que desde antes da redemocratização esteve presente nos mais importantes eventos políticos do país, anistia, campanha das Diretas Já e Constituinte da assembleia que assentou as bases da democracia. Ocupou também quase todos os cargos ao alcance de um político: secretário do Planejamento de São Paulo, deputado federal, senador, ministro de Estado duas vezes (Planejamento e Saúde), governador e prefeito de São Paulo. Só não conseguiu o cargo para o qual se preparou a vida inteira: a Presidência da República, que disputou por duas vezes, nas eleições de 2002 e 2010.

Cinquenta Anos Esta Noite é um depoimento do “ângulo de observação” de José Serra, segundo suas próprias palavras. Por isso, ele preferiu não ler nada da série recente de memórias sobre o golpe, a não ser um trecho de 1964 na Visão do Ministro do Trabalho de João Goulart, um calhamaço de 700 páginas nas quais Almino Affonso faz uma reconstituição dos dias turbulentos que antecederam a derrubada do presidente.

Outra providência tomada por Serra: não escrever uma tese. “Eu reajo sempre a livros feitos como tese acadêmica”, disse ao Valor na tarde de quarta-feira, 18/6, enquanto “lambia a cria”, um exemplar recém-saído do forno e enviado a ele pela editora Record. “Com uma tese, o autor arruma ou escolhe os fatos para comprová-la. Isso empobrece.”

O exemplo na ponta da língua de Serra é uma biografia de Mao Tsé-tung que começou, mas não terminou de ler. “Na primeira página eu vi qual era a tese do autor. Aí eu parei de ler.” Um outro exemplo, no outro sentido, é a biografia de Stalin do jornalista e escritor inglês Simon Sebag Montefiore. “Ele não tem uma tese. É um misto de escola acadêmica e jornalística. Então, ele vai pintando os painéis ao longo do tempo, da corte stalinista”, diz Serra. “É um livro maravilhoso, para você sentir e entender aquilo que acontecia, mas não tem uma tese específica.”

Renúncia de Jânio deixou uma sinuca de bico

Serra não tem uma tese sobre 64. A leitura das 266 páginas de Cinquenta Anos Esta Noite – O Golpe, a Ditadura e o Exílio, no entanto, desfaz alguns mitos sobre os últimos dias do governo Jango e ajuda a compreender o clima de intensa radicalização política do período. A questão das reformas de base, por exemplo. Enquanto escrevia, segundo conta, é que Serra se deu conta “de que em geral a abordagem a respeito do assunto exagera, seja num lance ou noutro, seja para a esquerda ou para a direita”.

Do “ângulo” de Serra, o Congresso não era a barreira que se diz que era. “O Congresso votou a favor de muita coisa fortíssima do ponto de vista político-ideológico.” Exemplo? A lei de remessa de lucros. “Mas não foi nem o Jango que mandou para o Congresso. Pelo contrário, ele segurou por quase dois anos. Não sancionou a lei, obrigou a voltar para o Congresso, o Congresso promulgou, ficou pendente de regulamentação. Isso foi em 1962, ele só regulamentou em janeiro de 1964.”

Vista de hoje, “a lei na verdade era um tiro no pé, embora – devo dizer – à época eu até fui à sanção da regulamentação, aplaudindo”, conta. “Mas ela só criava problemas de balanço de pagamentos a curto prazo, a fuga de capital. Se você está numa situação difícil no balanço de pagamentos, a última coisa que tem que fazer é estimular a saída de capital. Ou a não entrada. Mas isto eu estou analisando hoje. Mas era uma lei forte. O Congresso aprovou. E mais, o Congresso aprovou a sindicalização rural, que tinha muito mais impacto sobre as relações sociais no campo do que a reforma agrária.”

Era o que despertava as paixões e armava os espíritos. “A radicalização era imensa. Basta olhar a poesia do Vinicius de Moraes, que ficou meio esquecida, não é muito citada, sobre a reforma agrária. É uma verdadeira conclamação à luta armada.” Serra lembra-se do poema porque em cada ato, cada manifestação da UNE, havia sempre um grupo para recitá-lo. Quando não havia ninguém, ele mesmo declamava:

“Senhores barões da terra

Preparai vossa mortalha

Porque desfrutais da terra

E a terra é de quem trabalha

(…)

Chegado é o tempo da guerra,

Não há santo que vos valha:

não a foice contra a espada

Não o fogo contra a pedra

Não o fuzil contra a enxada

– União contra granada!

– Reforma contra metralha!…

– Granada contra Granada!

– Metralha contra metralha!

E a nossa guerra é sagrada

A nossa guerra não falha!”

No livro, Serra não toma partido na revisão historiográfica de Jango feita por algumas das obras lançadas por ocasião dos 50 anos do golpe militar que o apeou do poder. “Digamos que o Jango não era um estadista. Agora, nem sempre os presidentes são estadistas. E nem por isso fracassam, obrigatoriamente. É difícil apontar um fator isolado, que explique a quebra da democracia. Foi uma conjunção de circunstâncias que coincidiram no tempo”, diz.

A certa altura, Serra refere-se a uma fábula citada por um economista inglês para explicar determinado erro numa questão econômica: o gato comeu o canário. Há dezenas de explicações para isso, como alguém que deixou a porta da casa aberta e permitiu a entrada do gato, mas o fato inarredável é que o gato comeu o canário que deveria estar na gaiola. “A convergência e a coincidência de fatores é que explicam as mudanças em geral. Não há uma causalidade única, às vezes nem é a principal. Às vezes há, às vezes não”, filosofa Serra.

A sucessão de eventos que levou João Goulart a ser derrotado, Serra narra no livro. Ao Valor, o ex-governador São Paulo chegou a ser condescendente com Jango, que nos anos subsequentes ao golpe sempre foi pintado em cores fortes, como um presidente inepto e sem pulso. “A herança que ele recebeu em seu governo era muito adversa, com potencial de inflação enorme, o desgoverno que cercou a renúncia do Jânio [Quadros, presidente de 31 de janeiro a 25 de agosto de 1961] durante um bom tempo, era uma situação de curto prazo crítica.”

Serra entende que a renúncia de Jânio deixou a sociedade numa espécie de sinuca de bico. “Foi a falta de possibilidade de enfrentar essa crise de curto prazo que levou a transferir a responsabilidade daquilo que acontecia para obstáculos estruturais e à proposição de reformas. A reforma agrária era apresentada não apenas como algo para redistribuir renda, patrimônio etc., mas era também – e principalmente – para combater a inflação de alimentos, que era altíssima.” E a reforma agrária, vista por Serra nesta noite 50 anos depois “pode ter qualquer papel, menos aumentar a oferta de alimentos a curto prazo”.

Serra não vê paralelo entre a UNE de meados dos 60 e os protestos de junho de 2013. “Seria forçar demais. Mas tem uma coisa em comum: em todas as sociedades você tem períodos de introversão, em que as pessoas se voltam para o consumo privado, interesses mais circunscritos, e tem períodos de mobilização coletiva, que são resultado da decepção com o consumo privado. O último ciclo é claríssimo nisso.”

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Raymundo Costa, do Valor Econômico