Há tempos sonho com este projeto. Apresentar Míriam Leitão não tão somente como a brilhante e premiada jornalista multimídia. Mas como ambientalista, interlocutora mais do que relevante, que tem feito toda a diferença no cenário socioambiental brasileiro, e, porque não, global. Não gostaria de resumir e cair no lugar-comum de mostrar a Míriam de todos os dias – no jornal, na televisão, no portal ou na rádio-, mas uma faceta que apenas alguns conhecem.
Imagine, por exemplo, Míriam de galochas e chapéu, embrenhada em reserva indígena nos confins do Maranhão, junto a ninguém menos do que o afamado fotógrafo Sebastião Salgado. Não poderia gerar outro resultado: uma série genial, que venceu oPrêmio Esso de Jornalismo e mostrou ao mundo a dura luta pela sobrevivência da etnia Awá. Pense na jornalista que transita com a mesma desenvoltura junto a fontes do alto escalão do setor púbico e privado, assim como defendendo a causa dos negros, dos índios, dos menos favorecidos e das famílias de desaparecidos políticos.
No seu primeiro livro de ficção, em Tempos Extremos, Míriam encara seus fantasmas do passado e abre, de certa forma, o baú de memórias. Larissa, a personagem principal, é filha de um desaparecido político, que, como Míriam, conheceu de perto os tempos difíceis da Ditadura. Engajada politicamente, a jovem jornalista esteve presa por três meses quando estava grávida do primeiro filho, Vladimir. Hoje, em tempos menos extremos, a mineira de Caratinga passa quase despercebida, munida de binóculos e chapéu de abas largas na Reserva Particular, localizada na Zona da Mata de Minas, na qual aproveita os raros fins de semana de folga com a família. Longe do agitado dia-a-dia, Miriam recarrega as baterias procurando pássaros que serviram de inspiração para o primeiro livro infantil, A perigosa vida dos passarinhos pequenos, lançado em 2013.
Era este perfil, esta entrevista, que gostaríamos de apresentar ao leitor de Plurale. Apresentando a Míriam casada com o sociólogo e jornalista Sérgio Abranches (editor do Portal Ecopolítica e comentarista da CBN), mãe de Vladimir e Matheus, e um enteado, Rodrigo, avó de Mariana, Daniel, Manuela e Isabel. Generosa, Míriam não só aceitou o desafio, como respondeu a todas as perguntas. Sem deixar de comentar até mesmo sobre a relação entre a temática socioambiental e política. Conversamos sobreTempos Extremos, o novo livro; os desafios da migração para a Economia de baixo carbono; o desmatamento na Amazônia; a profissão; família e muito mais. Acompanhe esta entrevista exclusiva para os leitores de Plurale sobre esta jornalista/ambientalista multifacetada. “Sou uma pessoa do meu tempo”, resume. Agradecemos também imensamente a generosidade de Sergio Abranches que nos cedeu fotos do arquivo pessoal para esta entrevista.
Você acaba de lançar Tempos Extremos, seu primeiro livro ficção, após vários não-ficção. O que lhe moveu nesta direção? Foi difícil migrar para o terreno ficcional?
Míriam Leitão – No começo tentei fugir das ideias que vinham à minha mente. Mas depois que parei de brigar com o livro, a narrativa fluiu. Na verdade, percebo agora que o fato de ter lido muita ficção ao longo da vida me ajudou no jornalismo e na hora de escrever meu próprio romance. Uma boa reportagem tem que usar técnicas do texto literário. Foi arrebatador e libertador escrever um romance, porque nele eu tive que me entregar aos personagens totalmente.
Tomou gosto? Virão outros livros de ficção?
M.L. – Entrei no mundo dos livros para ficar e estou aberta. Estou há três anos escrevendo um outro livro, de fôlego, de não ficção, sobre o Brasil. Alternava isso com oTempos Extremos, indo de um para o outro com a mesma paixão. Há novos infantis no forno. Minha certeza é que quero continuar escrevendo, enquanto puder.
O livro fala dos porões de escravos e da ditadura, de fazendas de Minas, de natureza. Você esteve presa, quando estava grávida do primeiro filho, nos tempos de chumbo e nasceu em Minas … tem algo de autobiográfico este novo livro?
M.L. – Não é autobiográfico. Há pontos de contato. Há uma personagem que tem a minha faixa etária e também foi presa grávida, como eu. Mas ela é muito diferente de mim. Meu desafio foi exatamente não cair nessa tentação. A personagem principal, Larissa, tem 38 anos e vê a minha geração com estranheza, apesar de ela mesma ser vítima da ditadura por ser filha de um desaparecido político.
Tempos Extremos, apesar de ser ficção, também traz uma parte relevante de pesquisa, reportagem. Mostra as suas pesquisas sobre escravos, do que foi resgatado com as escavações na Zona Portuária carioca. O que mais lhe impressionou nesta pesquisa?
M.L. – Fiz pesquisas sem saber que seriam usadas nos livros. Há anos venho lendo sobre escravidão por interesse de entender melhor a história do Brasil e especificamente este período doloroso. Isso me levou a fazer reportagens como aArqueologia da Escravidão. E a reportagem me deu ideias para o livro. Foi tudo natural. Uma coisa levou a outra. Andando nas pedras do Valongo ou no Cemitério dos Pretos Novos fui tendo ideias para o livro. Uma visita que fiz, movida apenas pelo interesse pessoal, a uma exposição na Casa de Rui Barbosa me ajudou a compor uma personagem do período da escravidão. Para o leitor de Plurale entender: o livro tem duas trilhas, uma família de escravos que se divide sobre como enfrentar a escravidão no século XIX. E uma família que nos dias de hoje se reúne numa fazenda para o aniversário da matriarca, mas que carrega uma grande divisão, não sanada, do período da ditadura. Eles viverão emoções fortes no desenrolar da trama tanto em um quanto em outro tempo. Não são dois livros em um. A ficção, que tudo pode, aproxima os dois tempos extremos do Brasil.
Na sua carreira jornalística, as primeiras experiências foram como repórter de Política, depois de repórter de Diplomacia e se consagrou na Economia. Mas também tem forte viés socioambiental. Dá palestras e é escritora. Como se classificaria? Que atividade gosta mais?
M.L. – Sou uma pessoa do meu tempo. O jornalista hoje é um produtor de conteúdo e isso pode ir do Twitter ao livro. Quero comunicar: ideias, histórias, causas. Gosto de tudo do que eu faço e aproveito a pergunta para deixar claro que continuarei jornalista enquanto viver. Minha ida para os livros não me afastará do jornalismo.
Seus dois filhos são jornalistas. Jornalismo está no DNA?
M.L. – Vladimir Netto (da TV Globo, em Brasília) e Matheus Leitão (da Folha de S.Paulo) são dois excelentes jornalistas e escolheram caminhos diferentes do meu. Gostam e se dedicam mais ao jornalismo investigativo que é o mais forte na geração deles. Aprendo muito com eles.
Em seu trabalho, tem acompanhado os principais fóruns de diálogo sobre o Desenvolvimento Sustentável, como a Rio 92, a Rio + 20 e as reuniões de clima da COP. Qual a sua análise do que tem visto? O tema é urgente, mas os líderes globais lhe parecem dispostos a ceder em prol de países subdesenvolvidos?
M.L. – É a marcha da insensatez novamente. Não é a primeira vez que a humanidade adia o inadiável. Mas neste caso, pode ser fatal. Acompanho esse debate porque sei que ele é central no mundo de hoje. Basta olhar em volta. O Brasil vive esse ano um momento extremo do clima e um estresse hídrico de grande proporção.
Acredita na nova filantropia de nomes de grande destaque, como Bill Gates e Warren Buffet, que estão envolvidos em cruzada pela transferência de tecnologias para estes mercados menos favorecidos?
M.L. – Os Estados Unidos têm a tradição da filantropia e do voluntarismo. Em parte isso se faz com deduções do Imposto de Renda.
No caso do Brasil, a questão da sustentabilidade tem realmente avançado? É realmente uma preocupação séria de empresas, governos e Terceiro Setor ou ainda estamos patinando?
M.L. – Ainda estamos patinando. Pior, há momentos que penso que recuamos. Houve um esforço forte até o começo do governo Dilma, mas de lá para cá colecionamos retrocessos. As empresas falam mais do que fazem em sustentabilidade.
Acredita que a pauta de sustentabilidade estará presente nas eleições de 2014?
M.L. – Deveria estar porque este ano vivemos uma seca severa no Nordeste, São Paulo corre o risco de colapso de água, os reservatórios das hidrelétricas estão com nível crítico de água. Mas o debate eleitoral brasileiro tem sido ditado pelos marqueteiros e não pelas necessidades do país.
Devastamos a Mata Atlântica, o Cerrado e o desmatamento da Amazônia, apesar dos números mostrarem redução, ainda são dados alarmantes. Pelas suas andanças por sertões e veredas, o que tem visto?
M.L. – Tenho visto devastação e a luta da conservação. Alguns protegem, preservam e replantam por amor e por serem visionários. Os conservacionistas não desanimam e isso me estimula a sonhar com um país melhor e mais sustentável no futuro.
Reportagem com Sebastião Salgado junto aos índios Awá, no Maranhão, lhe rendeu recente Prêmio Esso. A série mostra que aquela etnia e tantas outras mandam SOS. Falta uma política consistente para os povos indígenas no Brasil?
M.L. – Falta até algo mais elementar: entender os povos indígenas. Eu digo sinceramente que agradeço a chance de ter feito a reportagem porque tive que estudar o tema e lá ver o mundo da perspectiva deles. Aprendi muitíssimo, mas ainda é pouco o que eu sei. Eles prestam aos outros brasileiros um enorme serviço ambiental. Viajei por um Maranhão devastado, seco e quente. Encontrei um oásis: era a floresta onde os 400 Awá estão dispostos a dar a vida para manter as árvores em pé.
Junto ao seu marido, o também jornalista Sergio Abranches, compraram e mantém uma Reserva Particular do Patrimônico Natural (RPPN), em Santos Dumont, na Zona da Mata de Minas, que lhe rendeu inspiração para livro infantil. O que a natureza tem lhe ensinado? Gosta de observar pássaros?
M.L. – O convívio com a natureza, andar na mata, ouvir o canto dos pássaros tem feito de mim uma pessoa melhor. Sérgio e eu colocamos em prática o que pregamos e já replantamos 32 mil mudas de árvores de espécies nativas da Mata Atlântica e fizemos uma RPPN. Hoje metade dos nossos 113 hectares em Minas é ocupada por mata fechada ou bosque em crescimento. Os pássaros voltaram, os mamíferos começam a aparecer, a água brota do chão. Isso tudo me inspira.
Que região – no Brasil e no mundo – planeja conhecer em breve?
M.L. – Vou de novo a Amazônia. Não quero parar de ir. São muitas amazônias e eu quero conhecê-las todas.
Um novo livro infantil acaba de ser lançado. Do que fala, é para que público?
M.L. – A Menina de Nome Enfeitado foi escrito para falar do encantamento da entrada no mundo da leitura e para resolver um problema: o que fazer com o H. Mas de alguma forma eu acabo falando de “caminho da mata” e “ninho de passarinho”. Afinal, aí tem H. É para crianças em fase de alfabetização. Já está nas livrarias. Acabei de lançá-lo em São Paulo e aguardo chance de lançar no Rio.
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Arianas, nascidas no Dia do Jornalista
Um jornalista não se faz da noite para o dia. Muito menos apenas após a formação universitária, generalista e normalmente rasa. É no dia-a-dia, a partir da paciência de colegas – chefes e repórteres com maior experiência – é possível ir formatando, burilando este ser que precisa, antes de mais nada, aprender a pensar.
Felizmente tive esta imensa sorte. Ao longo de 30 anos de profissão, transitando por diversas redações – como Jornal do Commércio, O Dia, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil (por onde estive em diferentes fases por 14 anos) – convivi com alguns dos mais brilhantes jornalistas da geração atual. Para não correr o risco de esquecer de tantos nomes, cito apenas os editores diretos: Ricardo Bueno, Luiz Cesar Faro, Coriolano Gatto, Cristina Calmon, José de La Peña, Míriam Leitão, Xico Vargas, Arnaldo César, Altair Thury, Cláudia Reis, Suely Caldas, Cristina Konder, Ricardo Boechat, Augusto Nunes e José Casado.
Um time de figurinhas carimbadas, capaz de fazer “corar” a Seleção de Felipão. Míriam foi minha editora por cerca de cinco anos, nos bons tempos do JB. Rigorosa sim, rancorosa não. Severa sim, mas esperando o melhor de cada repórter. Nos descobrimos, logo após algum tempo de convivência que nascemos no mesmo dia. Arianas, sim senhor! E como se a sina estivesse sido escrita, nascidas no Dia do Jornalista.
Guardo as melhores lembranças destes tempos. Ganhamos um prêmio de jornalismo pela cobertura investigativa do que viria a se transformar no Caso Naji Nahas, do megaespeculador responsável por um esquema fraudulento que colimou com a bancarrota de várias corretoras e da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Míriam não só bancou a matéria como defendeu os repórteres junto ao poderio econômico. Exigia, cobrava, sempre foi o seu estilo. Mas sabíamos que era sempre pelo melhor resultado.
Em quarenta anos de profissão, Míriam recebeu diversos prêmios, entre eles o Maria Moors Cabot, da Universidade Columbia, de Nova York. Ganhou o Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2012 por Saga brasileira, sobre o período que acompanhamos de perto da hiperinflação. Seus filhos seguiram os passos dos pais e são jornalistas de boa cepa. Feliz por também poder apresentar a minha Isabella, que se inicia na profissão.
Uma passagem ficou para sempre marcada. Apaixonadas por política, apesar de, na época, estávamos na Editoria de Economia do JB, nos envolvemos na cobertura das eleições presidenciais de 1989, marcadas por denúncias de manipulação em debates na TV. Conhecíamos de perto o “braço-direito” do ex-governador Leonel Brizola, o jovem economista (e ex-secretário de Finanças do Estado do Rio) César Maia. Brizola temia um novo “Caso Proconsult”, e sem confiar nas pesquisas e contagem oficial, deixou para César Maia a tarefa de contabilizar os votos por informes de regiões.
Míriam soube disso e me levou para o “quartel-general” dos pedetistas, no apartamento de Brizola. Entramos “escondidas” dos coleguinhas já no fim da tarde, começo da noite, com fotógrafo. Já sabendo ter sido derrotado no primeiro turno para Lula, a quem Brizola chamava de “sapo barbudo”, o gaúcho tinha partido para o Uruguai. Fizemos uma ampla e exclusiva cobertura deste fato histórico com vários pedetistas fundadores do partido.
Voltamos já tarde para a redação e Míriam “virou” o jornal para contar o que vimos e ouvimos. Sentada ao seu lado, me empolguei em escrever a “quatro mãos” o texto que começaria na primeira página. Fizemos uma matéria principal e outra menor. Fui embora com a sensação de ter, de certa forma, participado da História com H maiúsculo. Qual não foi minha surpresa, no dia seguinte, ao ver o texto assinado na primeira assinado apenas com o meu nome. E o de Míriam apenas lá dentro como colaboração. Generosidade é o seu nome. (Sônia Araripe)
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Tempos extremos: Ficcção com F maiúsculo
Tempos Extremos, por Míriam Leitão, Editora Intrínseca, 272 páginas, Preço sugerido: R$ 24,00
Não espere uma leitura fácil e despretensiosa. Tempos extremos é a primeira ficção – espera-se que de muitas – da jornalista Míriam Leitão e, na estreia, já deixa gosto de “quero-mais”. Larissa é jornalista frustrada, que migrou para a pesquisa em História. Filha de desaparecido político, não chegou a conviver, de verdade, com o seu pai. Sua mãe, Alice, amargurada, enfrenta a dor de um luto eterno, sem direito a velório. Primos, tios, parentes de uma grande família tradicional – com seus anseios e conflitos – se reencontram na Fazenda Soledade de Sinhá, no interior de Minas.
Larissa passa a ter, então, contato com o sobrenatural: “fantasmas” passam a “visitá-la” na madrugada, com a jovem Paulina e Larissa se unindo no desejo de fazer Justiça. Os tempos difíceis da Ditadura e da Escravatura se cruzam de maneira surreal. Do porão da fazenda secular e do “fantasma” ainda presente dos porões da Ditadura. Apaixonada por Guimarães Rosa e Gabriel García Márquez, Míriam abre, de certa forma, o seu “baú de memórias”, e vai desenrolando o fio de uma meada fantástica e de prender o fôlego. Pesquisadora detalhista, sem jamais abandonar sua veia jornalística, a autora aproveita o material apurado em reportagens: seja sobre as descobertas do Valongo e do cemitério dos pretos novos localizados na revitalização da Zona Portuária carioca, em “Arqueologia da escravidão” e também a série sobre a morte do ex-deputado Rubens Paiva nos porões militares. Ambas séries premiadas: Prêmio Abdias Nascimento 2012 na categoria menção honrosa e Prêmio Vladimir Herzog de 2012 na categoria reportagem de TV, respectivamente.
E como se desenrola a trama e seus personagens destes diferentes porões? Bom, aí só conferindo mesmo. Mais não conto para dar vontade de todos lerem Tempos Extremos e saberem como a história termina. (S.A.)
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Sônia Araripe é jornalista