Pouca gente vai discordar que Cacá Diegues é um dos grandes diretores brasileiros. E ele teve uma trajetória única – da crítica e do Cinema Novo aos grandes sucessos de bilheteria. Cacá há tempos vem escrevendo um livro de memórias que é também um resgate – de dentro – da história do cinema no País. Vida de Cinema finalmente foi dado como pronto pelo autor e está sendo lançado pela Editora Objetiva. O livro chega às lojas neste final de semana – 678 páginas, R$ 59,90 (o ebook custa R$ 29,90). Cacá autografa na Flip, em Paraty, na noite de 1.º de agosto e, no Rio, no dia 12, também de agosto. Ele conta tudo. E adverte, na abertura -”Esse livro não pretende provar nada. Nele, se você quiser pode pular parágrafos, capítulos, partes, páginas. Fique à vontade, leia só o que lhe interessa.” Um relato essencial, seminal. Mas também crítico, divertido, humano. Como essa entrevista por e-mail.
Existem filmes míticos, que os diretores perseguem durante anos. Esse é um livro mítico. Tem um desfecho meio abrupto, o pósfacio provisório. Certamente ainda haveria muito o que falar. Você resolveu dar um fim por que senão nunca ia acabar?
Cacá Diegues – É isso mesmo. Levei seis anos escrevendo esse livro, porque tive que parar várias vezes por causa de meu trabalho no cinema. Eu já tinha uns rascunhos para a continuação, mas percebi o que isso ia me custar de tempo. Aproveitei a data de 1995, o início da “retomada” em que o Cinema Novo vira pura história, para encerrar o livro.
Comecei a ler suas críticas no tempo da revista Arquitetura, nos anos 1960. Você pertence a uma geração culturalmente muito rica. O exercício da crítica foi importante, precedendo o cinema?
C.D. – Quase todos os cineastas de minha geração, além de fazer filmes, cultivavam a cultura cinematográfica. Alguns chegaram a assinar críticas em jornais, como Glauber, Gustavo Dahl, David Neves, eu. Outros, mesmo que mais esporadicamente, também escreviam, como Nelson (Pereira dos Santos) e Joaquim Pedro. O que nos movia, além do desejo de filmar, era um grande amor ao cinema. Não entendo como pode um cineasta não ter o costume de ir ao cinema e não se importar com o pensamento cinematográfico.
Você se envolveu em muitas polêmicas – contra as patrulhas ideológicas, até com parceiros de cinema. Como avalia hoje essas disputas que ocorreram em momentos pontuais?
C.D. – Como você mesmo diz, foram momentos pontuais. Além de cineasta, me considero um militante de cinema, tenho a obrigação de dizer que não estou de acordo quando o que está sendo dito ou feito não é bom para o cinema. Mas não guardo rancor, o ressentimento é uma coisa que só faz mal a quem o cultiva. Posso ter desavenças com estranhos ou colegas, mas não os considero inimigos compulsórios e eternos.
Sua geração tinha um programa bem modesto (digo sem ironia). Queria só mudar o mundo e o cinema. Conseguimos (estou me colocando nesse plural)?
C.D. – Não. Mas ajudamos os outros a verem o mundo de um modo diferente. A arte não é uma continuação da vida, mas uma outra vida porque essa que vivemos não é suficiente (acho que Ferreira Gullar já disse isso também, provavelmente melhor do que eu).
Glauber foi o farol de sua geração, e certamente existem muitos depoimentos ricos sobre ele. Mas você conta uma história que desconhecia e achei linda. É a história do apoio de Glauber ao Lima Barreto. Todo mundo fala do legado artístico dele. Mas e o homem que conheceste?
C.D. – Glauber foi a pessoa mais interessante que conheci na minha vida, todo dia sinto saudade dele. Essa fama de guerreiro indomável que ele tem, às vezes nos impede de contemplar sua generosidade, fraternidade, capacidade de se interessar pelos outros. Não sei explicar isso, mas tenho certeza que ele morreu de desgosto por não ter podido mudar o mundo.
Tenho a impressão de que Joanna Francesa foi um filme divisor de águas para Você. Aquela ideia da Jeanne (Moreau) no lombo de Eliezer Gomes resultou numa das imagens mais fortes do cinema brasileiro. Faz sentido?
C.D. – Você tem toda razão. Joanna Francesa é um divisor de águas, o momento em que primeiro encontro um razoável equilíbrio entre pensamento e sentimento, entre espetáculo e naturalismo, entre razão e emoção. Foi com Joanna Francesa que comecei a pensar que um filme deve emocionar, fazer pensar e encantar, tudo ao mesmo tempo. Os Herdeiros era uma metáfora épico-documental de minha geração. A Grande Cidade, um tributo ao cinema que me formou, do neorrealismo a Nelson Pereira dos Santos, uma ponte entre o Cinema Novo rural do início e uma nova tradição urbana. Foi com Joanna Francesa que comecei a fazer filmes com personagens, mesmo que fossem apenas meus personagens.
Você foi casado com Nara Leão, mas antes disso já estava casado com a MPB. Chico, Caetano, Gil, Cartola (a quem reverencia como mestre). De onde vem esse amor pela música?
C.D. – Sempre amei a música, talvez eu seja um músico frustrado. Gosto de tudo, ouço de tudo, de jazz a ópera, de tango a rock’roll. Mas é evidente que tenho especial interesse pela música popular brasileira feita pelos músicos de minha geração, os quais vivo reverenciando em meus filmes. Eu vi essa música nascer, acompanhei seu descobrimento e reconhecimento mundial. Só posso me sentir também um pouco responsável por ela, mesmo que isso seja apenas uma ilusão.
Estamos em plena Copa, e o relato sobre os brasileiros exilados assistindo aos jogos de 1970 é emocionante. Houve tanta oposição a essa Copa, tanto protesto. Você vê os jogos? Talvez me engane, mas formulando a pergunta pensei – esse cara nunca filmou uma partida. Por quê?
C.D. – A oposição não era propriamente à Copa, mas à maneira como ela estava sendo realizada pela Fifa e por nosso Governo. Adoro futebol e, como João Cabral e Nelson Rodrigues, acho que ele ajudou a formar o que poderíamos chamar de cultura brasileira. Tenho acompanhado a Copa diariamente, vi até Irã e Nigéria. Acho que a seleção brasileira não é mais aquilo que Pier Paolo Pasolini chamou no passado de ‘invenção do futebol-poesia’. Mas ela ainda dá pro gasto e está à altura de todos os outros favoritos. Existem excelentes documentários sobre futebol, como os de Joaquim Pedro, Eduardo Escorel e João Moreira Salles, mas não conheço um só bom filme de ficção sobre o assunto. Talvez o futebol seja inencenável: como seria possível, por exemplo, encenar um drible de Garrincha?
Sua carreira atravessa momentos de crise do cinema brasileiro, mas um e outro têm sobrevivido para contar novas histórias. E assim como você passou a se preocupar mais com o público, também passou a defender a parceria com a TV. Essa parceria tem futuro?
C.D. – Nenhum cinema nacional de todo o mundo pode sobreviver sem uma parceria com a televisão local. No momento em que se multiplicam os meios de difusão do audiovisual (TV aberta, paga, VOD, DVD, internet), essa parceria é mais do que nunca indispensável. Estamos no final de uma fase inicial de desconfiança mútua, mas acho que as coisas estão caminhando bem.
As comédias recentes têm sido muito criticadas. Há até uma tendência que consiste em definir parte dessas comédias como neopornochanchadas, o que não concordo. Me lembro que uma vez você disse que a pornochanchada era de direita. E hoje, os blockbusters de comédia?
C.D. – Paulo Emílio Salles Gomes nos ensinou a respeitar aspectos positivos das chanchadas dos anos 1950, que deplorávamos tanto. As comédias urbanas e de costumes que fazem sucesso hoje são herdeiras de uma tradição que vem do teatro de revista do início do século 20 até a chanchada que foi para a TV nos anos 1970. O que existe são bons e maus filmes, comédias ou não. E, afinal de contas, precisamos ter uma certa modéstia e reconhecer que quem faz o sucesso desses filmes é o público.
O que você tem visto de estimulante no cinema brasileiro? E mundial?
C.D. – Não tem acontecido muita coisa nova no cinema mundial. Depois da vulgarização do ‘cinema de autor’, tudo que não tiver efeitos especiais nem almejar ser um parque de diversões é tratado como “arte”. O que nem sempre é. Não temos mais aqueles grandes mestres e inventores dos anos 1950, 60 e 70 para nos ajudar a encontrar um rumo. Tenho a sensação de que os melhores cineastas de hoje em dia fazem seus filmes numa extrema solidão.
Comecei falando no livro mítico. Mas você sempre quis, ou há muito tempo queria filmar O Grande Circo Místico, que agora vai sair. Jorge de Lima foi sempre importante para você. Esses projetos muito difíceis, ou longos de concretizar, são intimidadores?
C.D. – Jorge de Lima sempre foi uma obsessão na minha vida, desde a adolescência. Por volta dos meus 18 anos, conheci o grande ensaista e poeta Mário Faustino que me ensinou a amá-lo e compreendê-lo melhor ainda. Glauber, que me conhecia muito bem, me dizia sempre que eu tinha que filmar a Invenção de Orfeu, um livro infilmável. Acho que a idade me ajudou a ter a ousadia (mais modesta que a sugestão de Glauber) de encarar O Grande Circo Místico. Mas desde que comecei a escrever o roteiro com George Moura, e sobretudo agora no início da pré-produção, o filme tem me chegado como se fosse uma novidade. Acho que a juventude, o entusiasmo e o estímulo da equipe que está trabalhando comigo me fizeram sentir como se acabasse de ter a ideia de fazer esse filme.
A literatura pode alimentar seu cinema, mas foram poucas adaptações. É diferente trabalhar com material original?
C.D. – A exceção de Tieta do Agreste, nunca fiz um filme totalmente adaptado da literatura. Em Ganga Zumba, usei os personagens do romance de João Felicio dos Santos, mas o filme não era uma adaptação do livro. O mesmo ocorreu com Deus é Brasileiro, tirado de um conto de João Ubaldo, e Orfeu, da famosa peça de Vinicius de Moraes. Sou um leitor sistemático, adoro a literatura brasileira e venero certos livros. Ou o livro é ruim e não me interessa perder tempo levando-o para as telas, ou é muito bom e tenho medo de estragá-lo.
Seu livro, como a vida, vai continuar?
C.D. – Não tenho projeto nem vontade de continuar o livro. Mas, sei lá, pode ser que no futuro mude de ideia.
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‘Joanna’ foi o grande divisor da obra inteira
Na entrevista acima, o próprio Cacá Diegues reconhece em Joanna Francesa o divisor de águas de sua carreira. Foi ali que ele começou a pensar que um filme deve emocionar, fazer pensar e encantar, tudo ao mesmo tempo. Na época do Cinema Novo, os autores queriam colocar – e de fato colocaram – o povo na tela, mas não necessariamente na plateia. Era o preço a pagar pela ousadioa, por fazer filmes críticos, contra a corrente. Reavaliando o movimento, Cacá acrescenta que sua geração ajudou os outros a verem o mundo de um modo diferente. E reflete, pegando carona em Ferreira Gullar, que a arte não é uma continuação da vida, mas uma outra vida, porque essa que vivemos não é suficiente.
Para o espectador que vai ler Vida de Cinema, o livro reserva surpresas. Algumas das mais belas referem-se à rodagem de Joanna Francesa no interior de Alagoas. Cacá havia importado uma grande estrela da França – Jeanne Moreau – e ela foi guerreira ao enfrentar as dificuldades da produção, o isolamento provocado pela barreira da língua. Mas houve um momentro em que Jeanne não aguentou. No último dias, ela pediu um refrigerante e o garoto da produção disse que não tinha mais. Ela explodiu, destratou o jovem que, à noite, lambuzou-se de m…, de certo (psicanálise elementar) para ficar no nível em que ela o colocara. A cena de Joanna, no filme, cavalgando no lombo de Eliezer Gomes – que havia sido Tião Medonho em O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias –, ganha outra dimensão, outro significado. Mesmo uma Jeanne Moreau pode encarnar a exasperação do colonizador perante o colonizado – que David Lean filmou como ficção em Passagem para a Índia, por meio do olhar de Peggy Ashcroft.
E Cacá conta como em Joanna Francesa houve a gênese de Bye-Bye Brasil, que viria a ser seu maior êxito internacional. A equipe voltava para o vilarejo que abrigava a produção quando viu aquela luz prateada. Seria disco voador? Não, era a TV que os moradores viam na praça central. O País estava mudando, e ele anteviu naquele momento o que seria a história de Lord Cigano e Salomé, José Wilker e Betty Faria, nas andanças da Caravana Rólidei pelo interior do Brasil. Ninguém nega a importância de certos filmes anteriores de Cacá ao dizer que foi depois de Joanna que vieram os maiores e melhores – Xica da Silva, Chuvas de Verão, Bye-Bye Brasil. À crise, ele respondeu com novas propostas – Dias Melhores Virão, Veja Esta Canção. Nunca parou de filmar. É um dos diretores brasileiros cuja obra se pauta tanto pela regularidade quanto pela coerência (e qualidade). O Maior Amor do Mundo é pela vida, e se a vida é de cinema, como diz o título de seu livro de memórias, esse amor também é pelo cinema. (L.C.M.)
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Luiz Carlos Merten, do Estado de S.Paulo