“Biografado bom é biografado morto”, a célebre frase do escritor brasileiro Ruy Castro, não se restringe às pessoas famosas. Ela poderia dar conta de uma instituição pública, que sob o risco de ter sua história revelada, se arma com unhas e dentes contra quem decide contá-la. Até que se enfraquece ou morre, e a realidade se impõe.
Pensemos, por exemplo, na FIFA – que, junto com o Brasil, país sede da atual Copa do Mundo, anda sendo muito criticada por aí. Quem se arriscaria a reunir detalhes de sua infância, as aventuras de sua juventude e os podres de sua vida adulta sem esperar um tormento dos bons? Talvez Ernesto Rodrigues, mas em sua versão de 10 anos atrás. Esse jornalista carioca é autor de Jogo duro – A história de João Havelange, uma biografia formalmente autorizada e depois desautorizada pelo brasileiro que é responsável pelo chamado “padrão FIFA” – e deu origem a uma série homônima e a um documentário (Conversas com JH) recentemente lançados.
O livro saiu em 2007, depois de uma exaustiva e extensa reportagem biográfica que culminou num embate ainda mais cansativo com Havelange. O ex-presidente de honra (1974 – 1998) da Federação Internacional de Futebol, em princípio cativado pela ideia de ter sua história contada, viu as linhas de sua narrativa saírem de seu controle e tentou proibir Ernesto de publicá-la, usando todo seu conhecido poder de persuasão e até lançando mão de ameaças. Mesmo surpreso com a reação, Ernesto não cedeu às pressões do maior figurão nacional dos esportes e seguiu adiante, chegando inclusive a usar o mesmo conteúdo de sua pesquisa para seus subprodutos audiovisuais e adicionando algumas novidades.
Ainda bem que foi assim. Talvez o mundo funcione mesmo com esse tipo de delay. Na época em que o livro foi lançado, as acusações contra Havelange se limitavam a uma imprensa adjetiva que nada, a seu tempo, conseguiu provar. Mas o tempo passou, a corrupção emergiu dos escândalos, e há dois anos chegaram à luz provas do “estilo mafioso” de Havelange, plasmado na relação que ele manteve com patrocinadores da FIFA – principalmente a Adidas e a Coca-Cola – e em 20 milhões de dólares em propinas que ele recebeu através da empresa de marketing esportivo ISL. Ele deixou a presidência antes disso, cedendo lugar ao atual dirigente da instituição e pupilo, Joseph Blatter. Mas foi vencido pelos fatos e, junto com sua juventude, perdeu todo o poder político de que gozou por décadas. Justiça biográfica feita? Talvez.
Mesmo assim, o atual ‘eu’ de Ernesto Rodrigues talvez não encarasse um desafio semelhante hoje. Jornalista com 20 anos de carreira na Globo, ele cedeu, após escrever a biografia de Ayrton Senna (Ayrton – O herói revelado), à tentação de contar a vida de João Havelange. Foi um acaso plantado por um reconhecido grande mecenas do esporte, o empresário brasileiro Antônio Carlos Almeida Braga, quem lhe sugeriu o projeto e apresentou os dois. Como se sabe, Havelange topou, mas se arrependeu. “O que irritou foi qualquer menção a adversários, qualquer revés que pudesse haver. As acusações de vista grossa, conivências etc”, explica Ernesto. “A megalomania e o ego dele foram maiores que sua notória capacidade política e sua inteligência”.
Se o jornalista escreveu o livro com “a faca no pescoço” e “como nos tempos da ditadura, com medo de retaliações”, com a série foi totalmente diferente. “Fiz a série com as 140 entrevistas que fiz com personalidades e jornalistas ligados ao tema, das quais 60 eu gravei com áudio e vídeo. É um subproduto biográfico, com a exceção de que o último dos quatro capítulos atualiza o livro com as revelações de dois anos atrás. Fui muito mais livre”, diz. Já o projeto do documentário surgiu para dar conta da briga biógrafo x biografado – por sinal, ainda pendente na justiça – e exigiu um novo ciclo de trabalho. Tanto um como outro são parte de um acordo de coprodução de sua produtora, a Bizum, com o Canal Brasil, que estreou a série em 21 de maio. O filme está disponível no serviço Now, da Net – ou então através do próprio Ernesto. “Costumo dizer que quem comprar o livro pode me escrever, que eu mando o documentário”.
Conhecimento de causa
Talvez os brasileiros que andam (ou andavam) tão insatisfeitos com o desempenho do Brasil como anfitrião da Copa ou então aqueles que desgostam da FIFA não saibam. Mas “a FIFA, como é hoje, é uma invenção de um brasileiro. Foi João Havelange que a transformou num empreendimento bilionário”, afirma Ernesto. Também foi ele, como se sabe, criou um padrão organizacional e transformou o futebol no esporte mais importante do planeta. Padronizou uma série de regras, democratizando, por exemplo, a arbitragem, que antes operava sob um ponto de vista exclusivamente europeu.
Esperto, JH fez questão de deixar seu discípulo Joseph Blatter, adepto de um estilo também impositivo e pouco transparente, em seu lugar. O que ele não esperava é que o suíço, atual presidente, tivesse uma capacidade persuasiva bem inferior. Afinal, a antipática FIFA goza de uma imagem muito mais negativa hoje do que anos atrás, como revela muito bem a sátira que o humorista britânico John Oliver para o seu programa na HBO americana – e que fez tanto sucesso neste Mundial circulando pela internet.
Para Ernesto, “o pupilo sucumbiu aos cacoetes de seu criador. Mas ele não tem nem um pingo do carisma do JH”. É por essas e por outras que ele arrisca dizer que ela dificilmente conseguirá manter o atual “esquema mafioso”. “Pode ser que aconteça com a FIFA o que aconteceu com o bloco soviético. Caiu de podre quando ninguém esperava”, compara. Quem sabe só então alguém tenha a coragem de “humilhá-la”, como define Ernesto. “Biografar, a meu ver, é dar sentido ao verbo ‘humilhar’. Não no sentido de tratar mal, mas de ‘tornar humilde’, ou seja, dar a dimensão humana de alguém que é famoso, proeminente”, esclarece.
******
Camila Moraes, do El País