Ele gostava de se definir como “um escritor sem estilo”, mas deixou sua marca em tudo que fez: desenhos, crônicas, poemas, peças de teatro, traduções, aforismos e fábulas, publicados em livros, revistas e jornais ao longo de sete décadas de carreira. Humorista, intelectual, artista plástico e comentarista político, considerava-se acima de tudo jornalista. Seu nome e os muitos pseudônimos que adotou (Vão Gogo, Volksmillor, Milton à Milanesa, Adão Júnior) estão ligados a algumas das páginas mais marcantes da história da imprensa nacional, em “O Cruzeiro”, “Pif Paf”, “Pasquim” e vários outros veículos. Nascido em 1924, no bairro suburbano do Rio que lhe valeu o apelido de “guru do Meyer”, ajudou a criar um esporte carioca, o frescobol, e um mito carioca, Ipanema. Morto em 2012, aos 88 anos, poderia ser descrito de mil maneiras, menos uma: “Só peço que não me olhem como um pensador, ou pior, um erudito”, escreveu: “Pensem em mim para o/s prazer/es calmo/s da vida. Mas também pro que der e vier. Sobretudo o contrário”.
Nas próximas semanas, muito vai se pensar e falar sobre Millôr Fernandes, que completaria 90 anos em 2014. Homenageado na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece de 30 de julho a 3 de agosto, ele será tema de mesas na tenda principal, reunindo nomes como Jaguar, Reinaldo, Hubert, Loredano, Sérgio Augusto e Claudius, e de exposições e debates na programação paralela. A ocasião será marcada por uma leva de reedições de algumas de suas obras mais importantes e compilações, somando mais de 10 lançamentos. E ainda há inéditos de Millôr espalhados pelas casas de amigos e parentes.
Na segunda-feira chegam às livrarias novas edições, pela Companhia das Letras, de quatro títulos, alguns esgotados há décadas: “Tempo e contratempo”, “Essa cara não me é estranha e outros poemas”, “The cow went to the swamp” e “Esta é a verdadeira história do Paraíso”. A L&PM acaba de reeditar “A Bíblia do Caos”, súmula de suas frases lapidares, e resgata peças como “O homem do princípio ao fim” e “Kaos”, entre outros volumes. A Nova Fronteira lançará a coletânea inédita “Guia politicamente correto Millôr da história do Brasil” e mais dois títulos. A Cosac Naify publica sua tradução de “A ovelha negra e outras fábulas”, do hondurenho Augusto Monterroso. E o Instituto Moreira Salles (IMS), que abriga o acervo gráfico do autor, hoje com cerca de 9 mil itens, lança dia 31, na Flip, “Millôr 100 + 100: desenhos e frases”, com cartuns escolhidos por Loredano e máximas selecionadas por Sérgio Augusto. A Casa do IMS, em Paraty, terá uma exposição inspirada no livro. E a instituição prepara para 2015 uma retrospectiva da obra visual de Millôr, com mais de 300 trabalhos.
– Ele detestava esse termo, “obra”. Dizia que quem faz obra é pedreiro – diverte-se o filho de Millôr, Ivan Fernandes, de 60 anos. – Ele vivia no presente, mais concentrado no trabalho diário de jornalista, não se preocupava tanto com os livros.
Desde a morte do pai, Ivan se dedicou a reorganizar seu catálogo, antes disperso por quase 20 editoras e agora concentrado em três, L&PM, Companhia das Letras e Nova Fronteira, e no IMS. Os planos do herdeiro incluem difundir o trabalho de Millôr em outros países. E ainda estuda a possibilidade de publicar um livro inédito que ele deixou pronto, com textos e desenhos sobre Igor, o poodle com quem conviveu por muitos anos.
O apartamento de Ivan, na Lagoa, guarda outros inéditos. No quarto, está um quadro que Millôr fez quando o filho de 7 anos pediu o desenho de um passarinho. Num canto estratégico da sala, a salvo da luz natural, está uma pintura a guache datada de 12/5/1947. Mostra um homem, uma mulher e um casal de crianças. No verso, a dedicatória: “A Wanda, c/a do Vão”. Foi um presente de noivado para Wanda Rubino, com quem se casaria no ano seguinte e teria dois filhos, Ivan e Paula.
– O quadro mostra como ele imaginava que seria a família É um desenho muito especial, que não dou para o IMS! – brinca Ivan, que, num texto a ser incluído num dos livros da Nova Fronteira, define sua relação com Millôr: “Meu pai foi um pai seco. Com explosões de carinho. Jamais se apresentou a mim como ‘estrela’. Sempre me tratou de igual para igual. Meu maior interlocutor. Nos respeitávamos mesmo discordando. Embora humorista, jamais foi de brincadeira. E nos amávamos. Muito.”
Humor, quintessência da seriedade
O humorista que não era de brincadeira resumiu essa postura num lema que ficou famoso: “O humor é a quintessência da seriedade”. No livro “Millôr 100 + 100: desenhos e frases”, essa máxima vem acompanhada de um cartum publicado na “Veja” durante a ditadura. Nele, um homem lê a revista sentado na linha do trem, enquanto uma locomotiva se aproxima. A legenda diz: “Aviso: é perigoso e ilegal ler esta seção nas entrelinhas”. Para o cartunista Cássio Loredano, colunista do GLOBO, consultor do Acervo Millôr Fernandes no IMS e organizador da parte visual do livro, esse é um dos desenhos que mostram como o trabalho de Millôr envelheceu bem.
– Quem olha esse desenho hoje ainda entende como o ambiente estava sufocante na época – diz Loredano, fã de longa data do artista. – Acompanho o Millôr desde criança, meu pai se virava para me explicar as piadas. Foi um prazer reencontrar esse material agora no acervo e ver como ele revisitava e aperfeiçoava piadas e temas.
“Millôr 100 + 100” traz amostras dessa prática, aproximando frases e desenhos criados em separado, às vezes com anos de distância. Um de seus dísticos mais repetidos, “Os pássaros voam porque não têm ideologia”, é acompanhado do desenho de aves vestidas caminhando num parque, sob um céu repleto de pessoas nuas voando. Outro clássico, “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem!”, aparece com o cartum de um psicanalista no divã, olhando-se num espelhinho.
Independência e audácia
Responsável pela seleção dos textos do livro, incluída em 2003 na edição dedicada a Millôr dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, do IMS, o jornalista Sérgio Augusto diz ter tido muita dificuldade para escolher apenas 100 frases entre as mais de 15 mil cunhadas pelo autor. Tanto que cogita levar mais 100 para ler em sua mesa na Flip. Com a experiência de quem conheceu Millôr em 1963, na redação de “O Cruzeiro”, e depois trabalhou com ele no “Pasquim”, Sérgio enumera as maiores qualidades do colega como jornalista:
– Independência, audácia e o brilho do texto. A primeira máxima que ele publicou, no “Diário da Noite”, em 1944, já é um gol: “Meu bem é o nome de solteiro do marido” – diz Sérgio.
O percurso até a primeira máxima foi longo. Nascido Milton Fernandes, perdeu o pai em 1925, com 1 ano, e a mãe, aos 10. Dizia vir daí seu ceticismo radical, que definia como “a paz da descrença”. Separado dos irmãos (entre eles Helio Fernandes, que também se tornaria jornalista), teve uma infância pobre, “dickensiana”, na casa dos primos. Foi graças a um tio, gráfico de “O Cruzeiro”, que começou a trabalhar na revista, como faz-tudo, em 1938. No mesmo ano, descobriu que a má caligrafia do escriturário que lavrou sua certidão de nascimento fazia seu nome parecer “Millôr”, e adotou o pseudônimo.
Leitor assíduo de quadrinhos americanos, como “Flash Gordon”, Millôr começou a publicar textos e desenhos em veículos como “A Cigarra”, “Diário da Noite” e “O Guri”. Em 1945, com as bênçãos do amigo Frederico Chateaubriand, sobrinho do Chatô, estreou em “O Cruzeiro” a seção semanal “O Pif-Paf”, sob o pseudônimo Vão Gogo. A princípio seus textos eram acompanhados por desenhos de Péricles, criador de “O amigo da onça”, mas em 1956 passou a ilustrar as próprias colunas. Nesse período, a circulação da revista subiu de 11 mil para 750 mil exemplares, e Millôr se tornou um dos nomes mais célebres da imprensa nacional.
Reunindo parte do trabalho assinado por Vão Gogo, o livro “Tempo e contratempo”, relançado agora pela Companhia das Letras depois de décadas esgotado, ajuda a entender o fenômeno. A produção de Millôr nessa época é uma explosão de inventividade gráfica e literária. Há gags visuais, como a seção “Como um quadro do salão vê as pessoas que o veem”, em que desenhos do ponto de vista das obras definem os tipos de frequentadores de galerias (“O Explicador: É o parasita da pintura”). Há cartuns ridicularizando a psicanálise e textos parodiando o saber estéril das enciclopédias (“Nascido em 1724 e morto em 1804, Emmanuel Kant conseguiu nesse período viver 80 anos, tendo, pois, aproveitado a vida”). E até a fábula de Chapeuzinho Vermelho narrada e ilustrada em quatro estilos: romântico, jornalístico, telúrico e metafísico.
Revolução visual na imprensa
Foi nessa fase que o cartunista Chico Caruso, do GLOBO, conheceu o trabalho de Millôr. Neto de um pintor tradicionalista, que não aceitava nem Picasso, ele se espantou com aquela forma de expressão “moderna, livre, absolutamente maluca”, diz:
– Era uma revolução como só se tinha visto na pintura, com Picasso e Mondrian, por exemplo, mas não na imprensa – diz Chico, que compara a obra de Millôr à do cartunista americano Saul Steinberg, lembrando que os dois dividiram um prêmio de caricatura em Buenos Aires, em 1957. – Neles, o fundamental é a linha. A caneta pensa.
Amigo de Millôr por três décadas, o cartunista mantém em casa, no Leblon, um quarto com livros, pinturas e objetos do mestre. Na estante, há uma primeira edição autografada de “Tempo e contratempo”, onde está um dos trabalhos preferidos de Chico: uma enorme página desdobrável com uma árvore desenhada, folha por folha, num papel que Millôr pregava na porta do escritório.
– Ele fazia uma, duas, cinco folhinhas de cada vez, por meses. Tinha uma dedicação e um amor pelo desenho que ninguém mais tinha – diz Chico, lembrando outra lição do amigo. – Por mais atividades que tivesse, Millôr sempre dizia que era jornalista, e isso fazia a gente pensar no nosso trabalho como jornalismo, não como arte ou humorismo.
A fase de ouro de Millôr em “O Cruzeiro” terminou em 1963, com a polêmica que se seguiu à publicação de “Esta é a verdadeira história do Paraíso”. Versão anárquica do “Gênesis”, retrata o Todo-Poderoso como uma figura mascarada, cuja identidade só se revela no último desenho. Ele cria o universo num impulso, resolve os problemas da Criação na base do improviso e envia a mulher, que considera sua obra-prima, para acabar com a entediante perfeição do Paraíso. A conclusão mordaz é Millôr em sua melhor forma: “Essa pressa leviana/ Demonstra o incompetente:/ Por que fazer o Mundo em sete dias?/ Se tinha a Eternidade pela frente?”.
O escândalo causado pela história é resgatado na nova edição de “Esta é a verdadeira história do Paraíso”, também pela Companhia das Letras, que inclui fac-símile e releituras por 18 cartunistas, como Angeli, Allan Sieber e Reinaldo. Escrita ao longo de muitos anos, ela chegou a ser exibida na TV na década de 1950, sem maiores percalços, antes de sair em “O Cruzeiro”, em novembro de 1963. No ambiente carregado das vésperas do golpe militar, protestos de religiosos e autoridades levaram a revista a se retratar publicamente. Millôr se demitiu e processou os Diários Associados. Disse depois que se sentiu “como um navio abandonando os ratos”.
‘Ipanema era a praça dele’
A carreira de Millôr seguiu em frente. Criou a revista “Pif Paf”, fechada pela censura em 1964 depois de apenas 8 números. Foi um dos fundadores do “Pasquim”, onde debochava da ditadura assinando uma página com a divisa “O inventor da liberdade de imprensa”. Escreveu dezenas de peças e traduziu Shakespeare, Molière, Ibsen, Pirandello, Beckett – e ironizou a má tradução na série “The cow went to the swamp”, com provérbios brasileiros adaptados ao pé da letra para o inglês. Publicou poemas, muitos reunidos na nova edição de “Essa cara não me é estranha”, e ajudou a difundir o haicai no Brasil. Implicou com os poderosos, em especial os presidentes (as ambições literárias de Sarney eram um de seus alvos preferidos). E continuou a jogar frescobol, o esporte que inventou nas areias de Copacabana nos anos 1950, e a observar Ipanema da cobertura na Vieira Souto, onde viveu por mais de 50 anos, e do estúdio na Gomes Carneiro.
– Ele amava o bairro, comentava qualquer mudança. Ipanema era a praça dele – diz o geólogo e jornalista Luiz Gravatá, amigo e vizinho de Millôr por mais de 30 anos.
Em sua cobertura em Ipanema, de onde costumava acenar para Millôr em seu estúdio, Gravatá mantém um museu afetivo em homenagem ao amigo. Guarda quadros, edições autografadas com desenhos inéditos (como um autorretrato com a camisa do Fluminense), livros e móveis seus e, emolduradas, as primeiras raquetes de frescobol –a dele mais gasta, de tanto acertar a bolinha, a do adversário bem menos. Um painel na piscina reproduz um cartum de Millôr e o bar da casa teve a logomarca, “Gravatá’s”, desenhada por ele.
Em 2012, Gravatá mobilizou parentes e colegas para conseguir da Prefeitura a criação do Largo do Millôr, no Arpoador. Atendia a um último pedido do amigo: não queria ser lembrado com monumentos nem pompa, só com um banquinho de onde se pudesse ver o pôr do sol. Dois anos depois de inaugurado o memorial, porém, a plaquinha com uma frase de Millôr que enfeitava o espaço foi trocada, sem aviso, por um anúncio publicitário, contrariando tudo que o autor quis dizer com o que antes se lia ali: “Para uma Constituição mais humana. Artigo 1º e Único: O pôr do sol é de quem olha”.
******
Guilherme Freitas, do Globo