Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como (não) ler os clássicos

A vida é curta para ler História da Literatura Ocidental sem as Partes Chatas, da americana Sandra Newman, que foi tema da “Ilustrada” no último sábado. A vida pode ser longa, no entanto, e certas polêmicas acabam inevitavelmente se repetindo.

No caso, o confronto entre um suposto elitismo do cânone literário com as supostas necessidades de uma época de poucos leitores. Com outra roupagem, outros protagonistas e graus variáveis de inteligência e boa fé, repetem-se debates como o que recentemente envolveu a “simplificação” de Machado de Assis por uma professora paulista.

Newman resolveu fazer um “guia irreverente” dos clássicos, atribuindo notas de zero a dez a uma lista que vai dos gregos a James Joyce, de acordo com critérios de “importância, acessibilidade e diversão”. Nomes como Luiz Costa Lima atacaram a iniciativa. Outros, como Luís Augusto Fischer, acreditam que o guia ajuda a difundir a leitura e a saudável discussão em seu entorno.

A princípio, estou com Fischer. Em sua definição comum, clássico é a obra que resiste à prova de sucessivas gerações. Que sigam os testes, portanto: cada um publique o que quiser, tente ganhar uns trocos fazendo o barulho que conseguir, e o público que embarque ou não na onda.

Desconfio é da objetividade, essa prima do simplismo, como são definidos – parece ser o que Newman fez – os conceitos de “acessibilidade” e “diversão”.

Um deserto de centenas de páginas

Por que gostamos de um romance, conto ou poema? É uma pergunta com resposta sempre condicional. Quanto maior o repertório de um leitor, sua base para comparações com outros estilos e abordagens de temas semelhantes, maior a chance de perceber a originalidade e complexidade de um texto.

“Chato” ou “difícil” pode ser apenas o que não entendemos por ignorância, como alguém que interpreta literalmente uma frase irônica. Ler também é superar essa estranheza inicial. Até uns 15 ou 16 anos, minha dieta fora dos Josés de Alencar da escola se resumia a enredos policiais, que acostumam o leitor a uma fórmula narrativa e um modelo de prosa e construção de tipos.

Foi por causa do gênero, inclusive, que resolvi enfrentar uma história detetivesca que acabaria mudando a minha vida: O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Trata-se de um catatau que inclui longos debates teológicos (dos quais não entendi xongas) e passagens em latim (que pulei sem dó). E, no entanto, por um desses mistérios no caminho de quem se dedica a uma convenção inútil, antissocial e às vezes ingrata como a leitura, algo daquela aridez sem concessões me fisgou.

Nenhum leitor de clássicos, aos quinze ou oitenta anos, deixa de sentir prazer – ou algo próximo disso, como a vaidade – ao enfrentar um deserto de centenas de páginas e chegar ao outro lado como um sobrevivente.

Alpinista cultural

De maneira análoga, a “diversão” não necessariamente está ligada ao riso direto, à fluência da escrita ou às peripécias de personagens aventurescos. Alguns dos melhores escritores contemporâneos provavelmente levariam bomba de Newman.

A profundidade de J.M. Coetzee é moldada por uma prosa lenta e com frequência gélida. A grandeza de Karl Ove Knausgard nasce de intrincadas descrições e digressões sobre assuntos que resvalam na mesquinhez. Nos dois exemplos, rimos (ou temos prazer) ao reconhecer as idiossincrasias de autores que não fazem esforço para serem agradáveis. Talvez seja um sentimento externo ao texto, mas qual o problema? A diversão não precisa nascer do sabor ou da surpresa.

Às vezes é um reconhecimento meio sarcástico: lá vai aquele chato – Faulkner, Kafka, Beckett, Thomas Bernhard, Lobo Antunes, Dalton Trevisan – dizer de novo aquelas coisas esquisitas.

Para quem mirou na irreverência, há algo de conformista nos possíveis critérios de Newman. Uma lista canônica que se curva aos prazeres mais imediatos e cômodos, sem arestas nem desafios, reproduz um dos piores vícios da tal época sem leitores: o populismo anti-intelectual.

Nesse contexto, o terceiro pilar dos juízos da americana, a “importância”, soa como conversa de burocrata ou alpinista cultural.

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Michel Laub é colunista da Folha de S.Paulo