Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘É um festival de rock, praticamente’

Uma Flip mais aberta, com mais telões gratuitos, ampliando a distribuição espacial e a interação do público que está nas ruas com a variedade da programação: essa é a avaliação da equipe da Casa Azul, que organiza o evento, em sua 12ª edição, encerrada ontem.

Essas decisões, motivadas pelo clima das manifestações de junho do ano passado – apesar de não ter ocorrido reivindicação específica da população local –, levaram a um crescimento de público de 30% em relação ao ano passado (a Flip ainda não divulgou o número consolidado), e algo do espírito informal da primeira edição, com gente mais à vontade ao ar livre assistindo aos eventos a partir dos locais onde pudesse, foi recuperado. “É um festival de rock, praticamente”, disse em tom de brincadeira o curador Paulo Werneck durante a coletiva de imprensa para divulgar o balanço deste ano, na manhã de ontem.

O crescimento de público não necessariamente se refletiu na lotação da Tenda dos Autores, a principal. Pelo contrário: em muitos casos, continuavam a existir lugares vagos, embora ingressos estivessem esgotados. “Criamos a fila do último minuto para resolver o ‘no show’. Muita gente compra ingressos para mesas que não dá conta de assistir”, afirmou Mauro Munhoz, diretor geral da Casa Azul, sobre outra iniciativa. Programações paralelas, como a da Flip Mais, também se ampliaram neste ano, o que levou o público a ter mais oferta de mesas. Nas redes sociais, tem sido maior a circulação do que aconteceu em Paraty. O número de seguidores no Facebook antes desta edição chegava a 19 mil; agora, são 60 mil. Outra novidade deste ano: ao fim da festa, os áudios de todas as mesas estarão na íntegra no YouTube, em português e inglês – até então, eram divulgados apenas trechos.

Com o sol de volta a Paraty, o prenúncio desde a abertura era de uma Flip “calorosa e divertida” tal qual o cartunista Millôr Fernandes (1923-2012), segundo destacou Werneck no primeiro dia do evento (quarta-feira, dia 30) – um respiro depois de um difícil mês para a literatura, com as perdas da sul-africana Nadine Gordimer e dos brasileiros João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Além de humor, dominaram as mesas alertas sobre os riscos à liberdade e à vida no planeta, contra crimes financeiros e de guerra, pela defesa de povos. Uma vigilância ao poder que também caracterizava Millôr, o homenageado deste ano.

Pensamento indígena

Há de se valorizar essa combinação, a do humor servindo de alerta, como se conclui da conferência que abriu a programação, na quarta-feira. Concentrado na arte visual de Millôr, o crítico Agnaldo Farias demonstrou, a partir de uma série de slides que percorreram charges, desenhos e pinturas, a autonomia e a importância do que o cartunista fazia. Emergiu a força de suas sacadas e denúncias, da garatuja infantil ao bruxuleio de cores, vistos em comparações com uma variedade de artistas que abarca desde Paul Klee e Pablo Picasso a Jackson Pollock.

Como Farias lembrou, a historiografia da arte costuma ver aquilo que tem humor como item de segunda categoria. A recepção ao que é engraçado nem sempre corresponde em igual medida à genialidade de quem o produz. “Falar de Millôr é falar de um erudito”, definiu Farias.

Não apenas visualmente, também em palavras Millôr se projetou em telões de Paraty: antes de cada mesa, eram apresentados vídeos com seus haicais, versos, provérbios e verbetes declamados por outros autores. O seu temperamento, assim como a memória de seu convívio, vieram de depoimentos de quem fez parte de sua trajetória nas duas outras mesas dedicadas ao homenageado: Millormaníacos, na qual o cartunista Jaguar conversou com os humoristas Hubert e Reinaldo, do Casseta & Planeta; e O Guru do Méier, debate que reuniu o cartunista Claudius, o jornalista cultural Sérgio Augusto e o caricaturista e pesquisador da área Cássio Loredano.

Entre vários episódios, Jaguar lembrou da vez em que Millôr escapou da prisão porque a viatura estava cheia e de uma briga no bar entre o amigo e Chico Buarque, com cusparada e impropérios. Também próximo de Millôr, Sérgio Augusto se recordou de uma viagem a Minas Gerais, quando presenciou as provocações que fez a duas primeiras-damas – Jacqueline Kennedy e Sarah Kubitschek.

A dimensão cômica esteve representada também nas mesas de literatura. “O verdadeiro sentido do humor não é fazer rir, é fazer pensar”, disse o mexicano Juan Villoro. Ao seu lado na mesa A Verdadeira História do Paraíso, o israelense Etgar Keret acrescentou: “O humor é uma maneira de lidar com realidade mantendo a dignidade”. Os risos vieram da plateia com autores como os brasileiros Antonio Prata, Charles Peixoto, Fernanda Torres e Gregório Duvivier, o paquistanês Mohsin Hamid e o peruano Daniel Alarcón.

Paraty assistiu a mesas de variedade de temas. Não apenas literatura, também arquitetura ciência, alimentação e pensamento indígena – abordado pela primeira vez, em mesas eloquentes – compuseram, entre outros assuntos, o cardápio a escolher. Nos debates, houve críticas duras a governos do Brasil e dos EUA. Nas ruas, houve protesto contra o bombardeio da faixa de Gaza organizado pela Libre, liga das editoras independentes.

Histórias de afetos marcaram outras mesas, não só as do homenageado. Em 2x Brasil, os cariocas Edu Lobo, compositor, e Cacá Diegues, cineasta, ao recordarem uma das épocas mais pródigas da cena cultural do Rio de Janeiro, lembraram Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Glauber Rocha. Amizades decisivas e temas de livros que escreveram foram abordados pelo mineiro Silviano Santiago e o francês Mathieu Lindon em Porque Era Ele, Porque Era Eu.

Afetos foram matéria de uma das mais concorridas – e aplaudidas – mesas, a do americano Andrew Solomon, que tratou de depressão e da paternidade de crianças especiais, temas de livros seus de repercussão. Apresentou ideias de seus livros: o contrário da depressão não é a felicidade, mas a vitalidade; o luto não deve ser confundido com depressão, é parte da forma como a sociedade compreende o amor. Sobre a formação de crianças, disse que é preciso respeitar suas diferenças. “Temos que dar confiança para que elas sejam quem são”, disse. Ao fim, subiu ao palco seu filho, que teve com o marido por meio da doação de óvulo e barriga solidária. Houve lágrimas na plateia.

A vigilância ao poder serviu de base para outra sequência de mesas. Em Liberdade Liberdade, Glenn Greenwald e Charles Ferguson reiteraram suas indignações diante da falta de punição após a crise financeira de 2008 e a denúncia de espionagem americana. Greenwald, cujas reportagens revelaram o escândalo deflagrado por Edward Snowden no jornal britânico “The Guardian”, defendeu o jornalismo como forma de ativismo. Ferguson, autor de “Trabalho Interno”, documentário sobre a crise financeira de 2008 – vencedor de Oscar na categoria – insistiu: “A crise não foi um acidente enorme, nem um erro grosseiro. Foi um crime, pura e simplesmente”. Seu novo projeto, que trata de mudanças climáticas, terá filmagem no Brasil. “Este é um dos lugares mais lindos do mundo. Por favor, não deixem que seja destruído.”

Em Narradores do Poder, o tema do ativismo x jornalismo esteve de volta. David Carr, colunista de mídia do jornal americano “The New York Times”, apontou riscos do ativismo na prática. “Você pode achar que está usando [uma causa ou um partido], mas na verdade está sendo usado”, disse. Graciela Mochkofsky, que investigou as relações entre imprensa e poder na Argentina em livros de repercussão, contou que em seu país os jornais sempre foram vistos como braços de grupos políticos. “A noção de um jornalismo vigilante do poder chegou tarde na Argentina. Agora, a polarização é imensa. Há um jornalismo que não critica o governo, e outro jornalismo independente que o combate.”

O colapso do país – e mesmo do planeta – foram a tônica das mesas sobre o pensamento indígena. Davi Kopenawa, líder ianomâmi ameaçado de morte por garimpeiros, dividiu uma simbólica mesa com a fotógrafa brasileira nascida na Suíça Claudia Andujar, com longa trajetória de registro da vida nas aldeias. Contaram sobre a vida, os mitos indígenas e o cerco contra eles, na mesa Marcados.

Mais atividades

Os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Beto Ricardo ocuparam a mesa Tristes Trópicos para denunciar a ofensiva contra os direitos indígenas – com perdas significativas em relação à Constituição. Defenderam que os índios devem ser vistos como futuro – com os quais o mundo contemporâneo deve aprender –, não como nosso passado. Numa das declarações mais fortes do evento, Viveiros de Castro disse que, dado o massacre indígena, o “Mato Grosso é a faixa de Gaza do Brasil”. “Do jeito que as coisas vão, é possível que nós, os brancos, acabemos por ser extintos antes dos índios.”

Além da Tenda dos Autores, a Casa Azul organizou programações paralelas como Flip Mais, Flipinha, para crianças, e Flipzona, para adolescentes, também com aumento de público estimado em 30% neste ano. Outras instituições têm tradição de montar programações durante a festa. Somando-se à Casa da Cultura e a Casa IMS, desta vez estrearam editoras, como a Rocco, que abriu sua Casa Rocco, e a Libre, a liga de editoras independentes.

A participação da Libre foi muito além do Ato Literário pela Paz na Palestina no sábado, quando o público assistiu ao recital de poemas de autores árabes, na língua original e em português. Na primeira vez que a liga das editoras independentes esteve em Paraty – e já anunciou que voltará no ano que vem –, ela montou sua programação em conjunto com a Nuvem de Livro, biblioteca on-line multiplataforma. A Casa Libre & Nuvem de Livro fez parte do circuito Off Flip das Letras.

“O interesse do público pela programação e pelas questões que a Libre e as editoras independentes propõem no mercado editorial, como a bibliodiversidade, confirma a ilimitada curiosidade literária do leitor. Mobilizamos as pessoas que estavam em Paraty e elas encontraram acolhimento. Discutimos na Casa Libre & Nuvem de Livros literatura, edição, tecnologia, políticas públicas e política internacional, sempre com a casa lotada e as pessoas assistindo pela janela”, disse Haroldo Ceravolo Sereza, presidente da Libre.

Na estimativa dos organizadores, cerca de 3.000 pessoas participaram da programação. “Foi comum as pessoas chegarem até com uma hora de antecedência para os eventos. Fizemos mais atividades literárias do que o previsto”, afirmou Sereza. Outros destaques foram as mesas Livros e Política, As Apostas de Editar e A Infância e o Livro, além do bate-papo Uma Vida com a Ficção, com o escritor Antonio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras.

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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico