O último livro da trilogia “Getúlio” (Companhia das Letras), do jornalista cearense Lira Neto, começa enumerando as muitas ocasiões em que o ex-presidente cogitou o suicídio. Em 1930, no início do movimento que depôs Washington Luís e levou Vargas ao poder, ele registrou no diário: “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”. Em 1932, diante da ameaça da Revolução Constitucionalista: “Escolho a única solução digna para não cair em desonra”. Em 1945, ao ser deposto: “Estou resolvido ao sacrifício para que fique como protesto”. Enfileiradas em poucas páginas, as declarações parecem rascunhos para aquela que seria sua derradeira frase: “Saio da vida para entrar na História”.
No mês em que se completam 60 anos dessa frase – e da morte de Vargas, em 24 de agosto de 1954 –, Lira Neto conclui seu trabalho de cinco anos sobre o ex-presidente, lançando “Getúlio 1945-1954: Da volta pela consagração popular ao suicídio”. O primeiro volume ia de seu nascimento, em 1882, até a Revolução de 1930. O segundo enfocava seu governo até 1945. O terceiro acompanha Vargas desde a deposição e o retiro nas terras da família, em São Borja (RS), onde articula o retorno à presidência, até o desfecho trágico no Palácio do Catete.
– O suicídio não foi uma medida desesperada, nem o gesto de um depressivo – diz Lira, em entrevista por telefone de sua casa, em São Paulo. – Em situações-limite, Getúlio várias vezes tomou em perspectiva o sacrifício pessoal. Os escritos íntimos dele são como a crônica de uma morte anunciada. Sempre teve a consciência de que não se permitiria passar à História como alguém derrotado em situação vexatória, desonrado.
Autor de biografias de Padre Cícero, do escritor José de Alencar e da cantora Maysa, Lira tomou como fontes principais para narrar os últimos anos da vida de Vargas os diários e cartas do ex-presidente mantidos na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Deu atenção especial às 1.652 páginas de correspondência entre o ex-presidente e sua filha, Alzira. O diálogo entre eles, diz o jornalista, ajuda a entender as negociações políticas e o dia a dia do período em que Vargas instalou-se no interior gaúcho, entre 1945 e 1950. Também foi importante para a pesquisa o manuscrito inacabado e nunca publicado do segundo volume de memórias de Alzira, arquivado na FGV.
Mais próxima da reportagem do que do ensaio histórico, a biografia de Lira foi elogiada por historiadores como Boris Fausto, autor de “Getúlio Vargas: o poder e o sorriso” (Companhia das Letras), e Maria Celina D’Araújo, autora de “A Era Vargas” (Moderna) e outros livros sobre o período. O próprio autor diz que não teve a pretensão de fazer uma análise dos governos do ex-presidente, mas sim de narrar sua trajetória “sem maniqueísmos”:
– Tentei falar de Getúlio sem devoção nem negação, com equilíbrio. Acho que consegui, porque sou atacado por todos os lados: getulistas me acusam de udenismo, antigetulistas me acusam de favorecê-lo. Os livros permitem várias leituras. Estão lá as atrocidades do Estado Novo, a tortura e o autoritarismo, mas também as conquistas da Era Vargas e seu legado para os trabalhadores – diz Lira, que vê Getúlio “ainda muito presente” no cenário nacional. – Os grandes temas da Era Vargas, como o tamanho do Estado e os direitos trabalhistas, continuam em nosso debate político.
Legado disputado por políticos
Prova dessa permanência de Vargas é que, desde a publicação do primeiro volume, em 2012, políticos de variados matizes comentaram publicamente a biografia, num esforço para colar sua imagem à do “Pai dos Pobres”. Adversários na eleição deste ano, a presidente Dilma Rousseff (PT) e o candidato do PSB Eduardo Campos elogiaram os livros. Fernando Henrique Cardoso descreveu a obra como um “itinerário humano, intelectual e político”. Lula evocou o apelo popular do gaúcho (“eu me vi andando com Getúlio, fumando um charuto, em Porto Alegre”). E José Sarney, em resenha em seu site, pinçou uma frase dita pelo protagonista: “vencer é adaptar-se”.
– Getúlio interessa aos políticos hoje porque tinha leitura aguçada das conjunturas e enorme senso de oportunidade histórica. E pelo fato de ter sido o homem que mais tempo se manteve à frente do Executivo no Brasil, é claro. Para o bem ou para o mal, foi mestre na arte da política.