Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, escritores rebeldes desafiaram o império on-line.
Em uma narrativa de ficção científica, a querela entre autores e a varejista Amazon poderia ser descrita assim. Num tom mais bíblico, é uma espécie de atualização da saga de Davi e Golias para o mercado digital.
Já no comezinho mundo real, no qual o gigante está longe de ser abatido, o conflito é mais um capítulo de uma batalha iniciada há três meses, envolvendo preços, participação nos lucros e o futuro da indústria editorial.
No domingo (10/8), 909 escritores assinaram uma carta, publicada no jornal “The New York Times”, contra a Amazon, exigindo que ela “pare de prejudicar a vida dos autores com os quais construiu seu negócio”.
Entre os signatários da carta estão, entre nomes desconhecidos no Brasil, pesos-pesados da literatura –em prestígio, vendas ou ambos (Paul Auster, James Patterson, Stephen King, Donna Tartt).
Produtos vários
Escolher quem é o herói e onde está o lado negro da força, na vida real, é sempre uma questão de perspectiva.
A Amazon está construindo um monopólio que vai terminar por destruir o mercado editorial como um todo ou promove, com sua agilidade, eficiência e baixos preços, uma difusão sem par da leitura?
A empresa de Jeff Bezos controla em torno de 60% da venda de e-books e um terço do mercado do livros impressos nos Estados Unidos. Para atrair consumidores, a Amazon busca sempre descontos e promoções, chegando a perder dinheiro na venda de alguns livros.
A política do menor preço motivou a disputa iniciada há três meses com a Hachette, a quarta maior editora do mundo, o que serviu de gatilho para a carta dos escritores.
A Hachette não aceitou a política feroz de descontos da varejista e sua tentativa de aumentar a margem de lucro na venda de e-books (de 30% para 50%, estima-se).
Para pressionar a editora, a Amazon passou a dificultar as vendas de livros de autores representados por ela, atrasando as entregas e eliminando a possibilidade de pré-vendas. J.K. Rowling (criadora de “Harry Potter”) foi uma das autoras afetadas.
Douglas Preston, também publicado pela Hachette, tomou a iniciativa de compor uma carta em protesto e ganhou apoio da comunidade literária.
Na carta, os escritores convocam os leitores a entrar em contato com Bezos e “dizer a ele o que pensam sobre isso”.
No sábado (9), antes mesmo de o golpe ser dado, a Amazon já contra-atacava. Divulgou uma mensagem incentivando seus clientes a enviar e-mail ao diretor-executivo da Hachette, Michael Pietsch, para pressioná-lo a fazer um acordo.
A Amazon disse que “nunca desistirá” de lutar por “preços razoáveis”. O site tenta reduzir os preços dos e-books da Hachette para US$ 9,99 (de R$ 22,6), enquanto a editora quer cobrar mais.
O diretor-executivo da Hachette afirmou por e-mail à Folha que US$ 9,99 não é um preço adequado a todos os livros.
“Essa disputa começou porque a Amazon está buscando muito mais lucro, em detrimento dos autores e das editoras”, comentou. “Mais uma vez, pedimos que a Amazon retire as sanções. Queremos negociar de boa fé.”
Além de livros, a Amazon oferece uma vasta gama de produtos: cortador de grama, brinquedos, fraldas, sapatos. Todos são fáceis de encomendar e chegam rápido. É um consenso que a Amazon instaurou um novo padrão de eficiência. O que o mercado pergunta agora é o preço que se pagará por isso. (Colaborou Giuliana Vallone, de São Paulo)
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Trecho da carta dos rebeldes contra a Amazon
“Como escritores –muitos de nós não publicados pela Hachette– sentimos que nenhum vendedor de livros deveria impedir a venda de obras, ou evitar e desencorajar clientes de pedir e receber os livros que querem. Não é certo da parte da Amazon selecionar um grupo de autores, que não estão envolvidos na disputa, para retaliação.(…) Pedimos que a Amazon resolva esta disputa com a Hachette sem fazer mais danos aos autores e sem bloquear ou retardar a venda dos livros aos consumidores”
Trecho da resposta da Amazon contra os rebeldes
“Queremos preços mais baixos para os e-books. A Hachette não. Muitos e-books estão sendo vendidos por US$ 14,99, até por US$ 19,99. Isso é injustificadamente elevado para um e-book. Com um e-book, não há impressão, não há perdas de vendas devido a falta de estoque, nem custos de armazenagem, nem custos de transporte. E-books podem e ser menos caros. (…) Nós nunca vamos desistir de nossa luta por preços razoáveis de e-books. Sabemos que fazer livros mais acessíveis é bom para a cultura do livro”
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Caso Amazon gera receio em editoras brasileiras
No Brasil, a Amazon também monopoliza atenção. O mercado vive a expectativa de quando, afinal, a varejista on-line vai começar a vender livros físicos no país.
No final de março, a Folha anunciou que a Amazon já havia assinado contrato com praticamente todas as grande editoras de livros do país.
Desde então, diversas datas para o início das operações já foram divulgadas pela imprensa. A última previsão, segundo fontes do mercado, é que a Amazon inicie a venda de impressos pela internet durante a Bienal do Livro de São Paulo, no fim deste mês. A Amazon não comenta o caso.
A empresa já vende e-books no Brasil desde 2012.
Mas recentes atritos da varejista com editoras dos EUA e da Europa (França e Alemanha, por exemplo) deixam o mercado brasileiro apreensivo. Atuando também nos livros impressos, a Amazon terá mais poder de barganha.
“Fico muito preocupada. A cadeia tem três pontos: o autor, o editor e o varejista. Se um deles tem força demais, prejudica toda a indústria”, diz Sônia Jardim, presidente do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros).
“Seria muito ruim se a Amazon dobrasse o mercado. Espero que eles cheguem a um acordo lá fora, até para termos mais tranquilidade para lidar com eles no Brasil”, reforça Marcos Pereira, editor da Sextante.
Já Roberto Feith, diretor da Objetiva, não vê a chegada da gigante on-line como ameaça concreta. “Aqui o e-book ainda engatinha e nossas varejistas são empresas sólidas. A concorrência vai ser difícil.”
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Guerra nas prateleiras
A saga da Amazon para dominar o mercado de livros
>> 1994 – Uma nova esperança – Jeff Bezos, 30, larga seu emprego no mercado financeiro e funda a loja virtual de livros Amazon, tentando aproveitar o potencial do comércio na web. Para as editoras, a empresa era uma oportunidade de negócio em um mercado dominado pelas grandes redes de livrarias. Além disso, permitia compras em cidades pequenas do interior dos EUA
>> 1995 – A ameaça fantasma – O modelo de negócio da Amazon consistia em vender livros a um preço próximo de seu custo, aumentando o volume de comércio. A ideia era reunir dados de seus consumidores para que, mais tarde, a empresa pudesse lhes vender centenas de outros produtos. Hoje, a venda de livros corresponde a apenas 7% da receita anual da empresa nos EUA (US$ 75 bi)
>> 1995-2000 – Ataque dos clones – Como as lojas físicas faziam, a empresa passou a cobrar das editoras uma taxa para colocar seus livros em destaque. Na Amazon, o pagamento faz com que os livros sejam recomendados na página principal. Segundo a revista “New Yorker”, editoras pagavam US$ 10 mil para destacar um produto sem que a Amazon repassasse dados específicos sobre quanto isso ajudava nas vendas
>> 2000 – A vingança dos Sith – A Amazon abriu o capital em 1997. Em 2000, após o estouro da bolha da internet, as ações caíam e Bezos decidiu focar nos lucros. Mas, em vez de subir preços, pressionou as editoras por taxas maiores para divulgar seus livros. Em 2004, a Melville House, uma pequena editora, não entrou no acordo. No dia seguinte, o botão “comprar” sumiu de seus títulos na Amazon.com –tática usada até hoje na briga com editoras
>> 2004 – O império contra-ataca – Determinado a não perder o mercado de livros para a Apple –que dominava o comércio musical com o iTunes e o iPod–, Bezos iniciou pesquisa para lançar um leitor digital de livros e passou a pressionar as editoras para que digitalizassem seus títulos. Em 2007, a Amazon revelou para o mercado o Kindle, seu leitor digital, no qual lançamentos e best-sellers seriam vendidos por apenas US$ 9,99.
>> 2010 – O retorno do Jedi – Insatisfeitas com o preço fixo dos livros digitais na Amazon, as editoras procuraram desenhar um acordo com a Apple, que se preparava para lançar o iPad. Sob os termos deste acordo, poderiam vender os livros digitais ao preço de varejo, mas deveriam pagar uma comissão de 30% a Apple. Pressionada, a Amazon teve de ceder e fazer um novo acerto com as editoras. Mais tarde, no entanto, protocolou uma queixa na Comissão de Comércio Federal dos EUA, denunciando uma suposta conspiração das editoras com a Apple para elevar preços e restringir a concorrência.
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Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S.Paulo