Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ubaldo, os cegos e as histórias

Era de morte o João Ubaldo. Aquela ironia sem igual, aquela narrativa culta e bela. Enfim, aquele engenho e arte de contar história, como um velho sábio, de alpercata e peito aberto, na calçada do mercado de Itaparica. Agora, depois de sua morte, andei relendo alguns trechos de seus livros, coisas memoráveis, pedaços do seu pensar – colocados nas falas dos personagens.

Trago aqui um recorte de Viva o Povo Brasileiro, seu romance de peso, seu livro maior, física e literariamente – sem desmerecer a grandeza do Sargento Getúlio e O Albatroz Azul. Sobre Viva o Povo, com todo o atrevimento que o diabo me deu, criei um personagem que se referiu a esse épico como “um livro das seiscentas”, por ter mais de seiscentas páginas. Numa novela histórica que escrevi, e que ainda está inédita, o personagem Pedro Labatives, muito do conversador, fala sobre a Independência do Brasil.

“Olhe, meu amigo, vou lhe dizer uma coisa, grito por grito, eu prefiro Viva o Povo Brasileiro, que é o grito de Ubaldo, ao Independência ou Morte, que foi uma bela de uma invenção atribuída a D. Pedro de Alcântara, Francisco, Antônio, João, Carlos, Xavier de Paula, Miguel, Rafael, Joaquim, José Gonzaga, Pascoal, Cipriano, Serafim de Bragança e Bourbon.”

Mais adiante, Labatives diz mais:

“O segredo da verdade, disse Ubaldo, é que não existe verdade. Não existem fatos, o que há são histórias. E é isso mesmo, a palavra história, aí, pode ser muita coisa, inclusive uma mentira mais cabeluda. É um livro das seiscentas, um tijolão de seiscentas e tantas páginas a contar e recontar trezentos e tantos anos de histórias, histórias que mostram como é que se fazem versões, heróis, vilões, enfim, como se constroem histórias.”

“A História se oculta na consciência dos homens”

Pois bem, no grande livro de Ubaldo, entre tantos belos personagens, há um que parece sintetizar o discurso da obra – é o cego Faustino. Ele diz o seguinte:

“A História não é só essa que está nos livros, até porque muitos dos que escrevem livros mentem mais do que os que contam histórias de Trancoso.”

E continua o cego:

“Toda História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a dos jornais, onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos”.

Então ele lança uma série de perguntas:

“Alguém que tenha o conhecimento da escrita pega de pena e tinteiro para botar no papel o que não lhe interessa? Alguém que roubou escreve que roubou? Quem matou escreve que matou? Quem deu falso testemunho confessa que foi mentiroso? Não confessa.”

E segue:

“Alguém escreve bem do inimigo? Não escreve. Então toda História dos papéis é pelo interesse de alguém. E tem mais: o que para um é preto como carvão, para outro é alvo como jasmim. O quer para um é alimento ou metal de valor, para outro é veneno ou flandres. O que para um é um grande acontecimento, para outro é vergonha. O que para um é importante, para outro não existe. Por conseguinte, a maior parte da História se oculta na consciência dos homens e por isso a maior parte da História nunca ninguém vai saber…”

Um bando de cegos apaixonados

Cabe aqui lembrar de um provérbio africano citado pelo uruguaio Eduardo Galeano: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caças seguirão glorificando o caçador” (O Livro dos Abraços, Editora L&PM, Porto Alegre, 2009).

Com outras palavras, o provérbio está na epígrafe de um livro do moçambicano Mia Couto: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça” (A confissão da Leoa, Editorial Caminho, Lisboa, 2012).

Pois é, agora voltemos para os nossos dias, esses dias – de morte de Ubaldo, morte de Ariano, morte de Rubem Alves – esses dias de morte para a Literatura e, por que não dizê-lo, dias de morte para a História, ela que todo dia é escrita conforme o interesse de quem a escreve – como disse o cego Faustino. Esses tempos em que, como diria Dickens na abertura do seu Conto de Duas Cidades, talvez sejam “o melhor dos tempos, o pior dos tempos”. Tempos em que muita gente escreve que o copo está meio vazio, alguns que o copo anda meio cheio, outros não vendo copo algum e mais outros fazendo desse copo uma grande tempestade.

E cada um, com seu olhar ou sua cegueira, enxergando nos outros – e apenas nos outros – um bando de cegos, alienados, apaixonados. Assim como o inferno são os outros, cegos são os outros, alienados são os outros, corruptos são os outros, apenas os outros, nunca nós mesmos. E assim caminha a História. Ou as histórias.

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Marcelo Torres é jornalista e tem pós-graduação em Jornalismo Literário