Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma poética da anunciação

Peculiaridades e sutilezas marcam Tempestardes (Ed. Patuá, SP, 2013, 144 pgs), livro de estreia de Leonardo Chioda. Paulista de Jaboticabal, formado em Letras pela Unesp e tendo estudado literatura italiana, poesia portuguesa e história do teatro na Universitá degli Studi di Perugia (Itália), conjuga a criação poética a um mergulho profundo na transcendência. Além do ofício literário, o autor dedica-se aos oráculos e à iconografia como estudioso e praticante do tarô, o que lhe confere uma visão científica e cosmológica do mundo aliada ao universo metafórico e metafísico da palavra.

Na fusão desses dois mundos, em que o onírico e o real se imbricam, em que o que se tangencia pelo olhar ou se comunica pelos versos, estabelece uma relação simbiótica entre o que o que se sente e o que se busca no mistério do que nos rodeia, os poemas de Chioda desvelam a apreensão do que é realmente essencial e profundo na natureza (dos homens e das coisas, dos acontecimentos e dos sentimentos).

Embora flertando com os signos desse ambiente em que as cartas e os elementos ligados à arte esotérica são (pre)dominantes, não se percebe na sua poesia o engajamento ou o sectarismo retórico. E ainda que cada palavra seja ressonância desses portais do conhecimento, não se percebe na linguagem qualquer exacerbação de suas projeções mí(s)ticas. Mesmo que da intimidade (ou fluência) de seu olhar haja a intensa e densa preocupação com a busca do sentido sagrado e/ou oculto de tudo, o que emerge de seu artesanato é a força semântica e dialética de um discurso poético sem a contaminação de um único signo, a escritura esparrama múltiplos tentáculos e os significados se ampliam ou amplificam a voz interior.

O sagrado e o profano

Seus sinais são multívocos, representam todos os prismas (de)conhecidos de uma mesma joia ou ideia, tanto que ao falar de nosso estar-no-mundo, Chioda propõe em “Poética do destino” sua concepção apriorística do ser/existir: “o destino não tem rosto/ só um cristal negro de sete pontas perpétuas/ (…)/ o destino tem a boca de florilégio – um mosaico”. E é nesse percurso que se constrói toda sua arquitetura poética, como percepção da vida como caleidoscópio, ou como invocação de uma permanente mandala em constante desafio – o ser em si mesmo como laboratório íntimo de permanente metamorfose; o eu poético como alavanca do eu humano, instância em que nada está definido ou acabado, o devir em estado de êxtase.

Em sua estreia, Leonardo Chioda não deve nada, não paga pedágio aos autores estabelecidos, porque já nasce com a segurança, autonomia, independência e uma inigualável substância erudita, condição rara nos. É um autor atavicamente enraizado na cultura clássica e no conhecimento científico, sua arte faz conexões entre Mallarmé e Augusto dos Anjos, dialogando não apenas com seus pares, mas com outras linguagens e vertentes, como se nota na inclinação filosófica de que está impregnada sua leitura do universo, referenciais importantes na sua formação humanista, a qual também é caudatária um acento crítico e questionador.

Em Tempestardes estão presentes os gurus de Chioda, principalmente bebendo nas fontes da literatura lusófona e espanhola, além de uma simbiose com a mitologia de outros temp(l)os e povos: de Sísifo a Prometeu, de Gandhi aos Astecas e Maias, da Grécia aos Incas, a sua lavratura estende o necessário fio de Ariadne para que possamos sair ilesos do labirinto de nosso próprio caos ou condição existencial.

Frise-se, ainda, que mais que uma homenagem aos seus mestres e influências, o trânsito estético de Leonardo é também uma busca de uma consciência ética nas vozes de Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Maria Garbiela Llansol e Maria Teresa Horta; na bibliografia de Hilda Hilst, Cecília Meireles, Pessoa, Murilo Mendes e Sylvia Plath; na comunicação com Lorca, Björk, Devendra Banhart, Jane Birkin e Cendrars. Na raiz poética de Chioda, seus versos se imantam do sagrado e do profano que há na exegese desses autores e que repercutem em sua geografia íntima.

Um ambiente sem norte

Estamos diante de uma criação de potência reveladora, polifônica e polissêmica, em que a diversidade de temas e a versatilidade do olhar poético culminam num facho que clarifica os caminhos a partir do próprio reconhecimento dos escombros. Do cipoal das contradições que nos atormentam, emerge a luz de uma inflexão cósmica, quando “o poeta se mede/ a partir do emaranhado que dispõe” para reconhecer “a geometria/ do desterro”. E, para além do enigma que tudo preside, realiza a necessária hermenêutica de si, quando proclama: “me transformo/ e em pé triunfarei hoje cedo/ saberei que mais tarde venci/ e não haverá passado que não é/ o meu futuro”.

Mais que uma obra poética, Tempestardes é um inventário plurissignificativo, é arquitetura de artista comprometido com as angústias e emergências não apenas da condição literária, mas da própria existência, escapando aos modismos de uma literatura de mercado, que têm empedernido o exercício poético nesses primeiros anos do novo milênio, regido pelos fetiches da cultura de massas e da implacável violência das relações virtuais impostas pela era atual, de extrema profusão tecnológica e negação dos sentidos.

Chioda sacode justamente essa tirania aviltante do supérfluo que contamina todas as artes, para propor uma implosão desse cânone dominante (o mais do mesmo que aí está). Sua poética anuncia, como bem reconhece Rosane Carneiro ao prefaciá-lo, “outra forma de escritura, novo modo de procura, mais leituras e visões a caminho” , para assegura-nos, na mesma linha de Octavio Paz (O poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor”) , ou no mesmo diapasão de Herberto Helder (“E o poema faz-se contra o tempo e a carne”) sua disposição de desnudar os portais do (re)conhecimento de si e da poesia: “dispo o poema/como quem ocupa as raias/ à luz da filologia/ sentindo as linhas das palmas/de toda estrofe/ o músculo de cada letra/ ao qual me venço…/”.

Um jovem poeta, porém amadurecido intelectualmente, que ao harmonizar forma e conteúdo, desfere um agudo espírito escrutinador nos insondáveis mistérios que nos atormentam e traz “luz/ e alguma promessa” nesse ambiente literário em que vivemos, tão viciado e sem norte.

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Ronaldo Cagiano é escritor