Em maio do ano passado, uma audiência da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no Rio de Janeiro, reuniu vários militares perseguidos pela ditadura. Entre eles estava o fuzileiro naval reformado Fernando Novais Coutinho. Em seu depoimento, Coutinho contou que no dia 25 de março de 1964 a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil comemorava o seu segundo aniversário na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, na Zona Norte do Rio. A festa se transformou num ato em defesa das reformas de base do presidente João Goulart e o então fuzileiro foi enviado para um cerco no local. “Nos recusamos a efetuar um massacre, porque a ordem era essa, jogamos as metralhadoras no chão, pulamos o muro e apoiamos o movimento”, lembrou. A decisão lhe custou a expulsão das Forças Armadas e nove meses de prisão após o golpe militar, poucos dias depois. Uma das justificativas golpistas foi, inclusive, a agitação política dos praças.
Militares como Coutinho foram, proporcionalmente, o grupo mais atingido por punições políticas depois de 1964, com a expulsão de milhares de praças e oficiais. Contudo, a pouco conhecida militância de esquerda dentro das três forças não começou na década de 1960, como mostra o professor Paulo Ribeiro da Cunha no livro “Militares e militância: Uma relação dialeticamente conflituosa” (Editora Unesp). Cunha, que é professor de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Marília (SP), explica que desde o início do século a movimentação política foi intensa.
Um dos casos mais conhecidos foi a rebelião dos marinheiros, em 1910, na Revolta da Chibata. Houve ainda revoltas de sargentos entre 1915 e 1916, menos conhecidas. Ao longo desta década, foram registradas várias demonstrações de solidariedade dos praças com protestos populares. Um caso ocorreu entre agosto e setembro de 1918, durante uma greve dos trabalhadores do serviço de bondes e barcas em Niterói. Soldados do Exército aquartelados na cidade se posicionaram junto aos grevistas e contra a polícia.
Este campo heterogêneo, que o professor classifica de “esquerda militar”, agrupava nacionalistas, socialistas, democratas e comunistas e era bastante forte entre os praças. Uma das razões dessa influência, conta ele, é a situação de fragilidade vivida por soldados, cabos, sargentos, fuzileiros e marinheiros, como a falta de estabilidade. O contexto internacional e a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, também contribuíram para a politização.
– Havia uma situação muito negativa nas Forças Armadas, o tratamento dispensado aos praças vinha do Império, uma situação de falta total de direitos. O comando era muito elitista. É a partir de 1929 que há uma aproximação mais efetiva entre o PCB e os militares, com a criação do setor militar do partido, o Antimil, por orientação da Internacional Comunista. A partir da adesão de Luís Carlos Prestes, na década de 1930, esse movimento se intensificará bastante – aponta o professor.
Referência histórica
Cunha afirma que, até 1945, a agenda da esquerda militar era insurrecional, com o objetivo de fazer uma revolução. O ápice dessa estratégia foi a Intentona Comunista, em 1935. A partir da tentativa frustrada, houve uma mudança gradual de estratégia. Em 1938, a orientação do PCB já era de defesa da democracia, de luta pela anistia e em prol da união nacional. Com o fim da ditadura do Estado Novo, o grupo assume o papel de defensor da legalidade democrática e, segundo o professor, atua decisivamente em vários momentos, como ao garantir a posse do presidente Juscelino Kubitscheck e ao debelar as revoltas da direita militar de Jacareacanga, em 1956, e Aragarças, em 1959. Além de ter um papel decisivo em campanhas como a do “Petróleo é nosso”.
Na sua opinião, os militares de esquerda poderiam atuar mais incisivamente em 1964 caso o presidente João Goulart optasse por resistir. Ele destaca, entretanto, que apenas 3% dos atingidos por expurgos entraram na luta armada contra o regime.
– Depois de 1964, a atuação desse grupo foi principalmente no plano político, na luta pela redemocratização, com a formação de entidades de militares cassados (como a Associação Democrática e Nacionalista de Militares). Depois de cassados, eles passaram a ser vistos como mortos-vivos. Suas esposas recebiam pensões como viúvas. No caso de alguns aviadores, por exemplo, portarias secretas só descobertas anos depois os proibiam de voar. E eram heróis de guerra, muitos participaram da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra.
A história da tradição da esquerda militar no século XX, assim como as perseguições aos seus membros e simpatizantes durante o Estado Novo e a ditadura militar, é pouco estudada e sofre com a falta de documentação disponível. Cunha diz que os currículos das academias militares ignoram a Coluna Prestes, embora esta seja objeto de pesquisas em instituições estrangeiras. Sobre a circular, revelada pelo GLOBO, determinando que apenas o gabinete do general Enzo Peri, comandante do Exército, pode fornecer informações sobre o período entre 1964 e 1985, o professor vê, na raiz da medida, um ideário da década de 1930.
– Eles insistem que apenas os comandantes podem falar pelas instituições. Isso vem de 1932, com a doutrina Góes Monteiro, que procurou acabar com a política no Exército e fazer a política do Exército. Todas as tentativas nesse sentido foram malsucedidas. Se você buscar a formação do comando atual das três forças, ela se deu no período Médici, o que para muitos militares ainda é uma referência histórica. Há uma tensão em responder à sociedade democrática sobre comandantes aos quais eles já foram subordinados. É uma pena, pois estão perdendo uma ótima oportunidade – lamenta.
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Leonardo Cazes, do Globo