Uma mulher ressentida pode ser mais perigosa do que um exército equipado com as armas mais modernas. A França comprovou a capacidade de destruição de um livro na semana passada quando chegou às livrarias Merci pour ce moment, da ex-companheira do presidente da República François Hollande, a jornalista Valérie Trierweiler. Um acerto de contas que deveria ser privado foi lançado na praça pública em forma de confissão-reportagem, com tiragem inicial (já esgotada em poucos dias) de 200 mil exemplares. “O ressentimento é o chulé da alma”, dizia o escritor e acadêmico Otto Lara Resende (1922-1992). O livro de Valérie Trierweiler não vai acrescentar nada de positivo à sua biografia. Vai apenas somar centenas de milhares de euros à sua conta bancária.
Os jornalistas franceses, que sempre tinham preservado a vida privada dos homens políticos, evitando o que eles chamam “mélange de genres”, viram pouco a pouco desaparecer essa espécie de indiferença e respeito no mandato de Nicolas Sarkozy. Este não se conteve e sem que ninguém lhe perguntasse lançou em entrevista coletiva: “Com Carla é sério”, logo depois do começo do namoro com a cantora e ex-manequim Carla Bruni. Pouco depois se casaram sem que nenhuma foto fosse publicada na imprensa, para remediar a gafe que chocou a opinião pública na época.
François Hollande havia prometido que a vida política não sofreria a invasão da vida privada. Ele, que todos descrevem como muito cioso de sua intimidade e de sua vida pessoal, se viu ridicularizado quando uma revista de celebridades e fofocas chamada Closer publicou fotos, em janeiro de 2014, que o mostravam na garupa de uma moto conduzida por um segurança chegando a um endereço próximo do Palácio do Eliseu para se encontrar com sua amante, a atriz Julie Gayet (ver “Presidentes têm direito a vida privada?“). A França penetrava na intimidade de um presidente que prometera não misturar vida pública com vida privada.
Tuíte polêmico
Jornais do mundo inteiro se deleitaram com os detalhes da vida íntima do presidente, a “first girl-friend” (como os americanos chamavam Valérie Trierweiler) foi internada num hospital. A mistura de gêneros tinha sido introduzida definitivamente no mandato de Hollande. Ele mesmo redigiu o texto que foi ditado à France Presse anunciando a separação.
A mulher traída, humilhada publicamente, esperou em silêncio para dar o troco. Apenas o tempo de terminar a redação da obra que lhe serve de vingança. Ela tinha sido antes a amante de Hollande, quando este vivia maritalmente com Ségolène Royal. Alérgico ao casamento, Hollande? Possivelmente. Alérgico a compromissos, ele se esquiva sempre na hora de tomar decisões, dizem seus críticos.
“Hollande confrontado à exposição de sua vida privada”, intitulou o Le Monde no dia em que o livro apareceu nas livrarias. A publicação foi tratada por semanas em total sigilo entre a autora e a editora e, para que nada vazasse, o livro foi impresso na Alemanha. Os livreiros, assim como o presidente e todos os franceses, só tomaram conhecimento da existência do míssil de Trierweiler na quinta-feira (4/9), dia em que chegou às livrarias de todo o país.
“A separação se transformou em execução pública”, escreveu o diretor de redação de Libération, Laurent Joffrin, num editorial na edição de fim de semana. “Sua situação política [de Hollande] é suficientemente ruim para que a gente se concentre em suas decisões, seus discursos, sua estratégia.” O jornal foi ouvir uma jornalista, autora de um livro sobre Hollande, que cobria o Partido Socialista e passou a cobrir a Presidência, além de outras personalidades que conhecem bem o presidente. Nenhum deles reconhece Hollande na frase assassina que lhe atribui a ex-primeira dama. Ela conta que ele despreza os pobres e se refere a eles como “les sans-dents” (os sem dentes). Imagine-se o estrago que isso pode causar na carreira de um político do Partido Socialista.
De fato, um presidente que atingiu o recorde de 13% de aprovação de seu governo – a mais baixa da V República, inaugurada em 1962 pelo general De Gaulle – não precisava dessa bomba lançada por uma companheira, que nunca foi amada pelos franceses e cometeu diversas gafes durante os dois anos em que viveu e padeceu como first lady.
Ela se sentia humilhada por uma situação inédita em que a mulher do presidente não era sua mulher mas uma compagne. Na França, ninguém chama de mari ou femme senão a pessoa com quem se é casado oficialmente. Sua insegurança revelou-se em gafes como o tuíte apoiando o candidato que se opunha a Ségolène Royal nas eleições legislativas de 2012. Ségolène perdeu a eleição para deputada, mas o tuíte foi comentado e criticado por muito tempo. E ficou marcado como um sintoma.
Felizes e indignados
O Le Monde viu no livro apenas o capítulo mais recente de uma “tragicomédia político-pessoal de um dos profissionais da política mais desprovidos de afeto”. Nos trechos que reproduziu logo na primeira reportagem sobre o livro, o jornal o definiu como uma obra “na qual tudo é misturado, o público, o privado, o íntimo e o político”.
“Cínico, mentiroso e antipobres… Realmente?” Esse título da matéria de seis páginas da edição do fim de semana de Libération levava o leitor a tentar descobrir o que o jornal perguntava na capa: “Quem é você, François Hollande?” De certa forma, o presidente foi colocado num divã. Os jornalistas partiram do princípio que o perfil desenhado pela ex-primeira-dama não é necessariamente isento.
No Journal du Dimanche, de direita e único jornal a circular no domingo, além da reportagem sobre a degringolada de Hollande e do primeiro-ministro Manuel Valls nas pesquisas, os jornalistas listaram três motivos para ler o livro-confissão de Valérie Trierweiler, que se tornou um bom argumento para alvejar Hollande.
Remando contra a maré dos livreiros, que receberam com prazer um volume que se tornou um fenômeno editorial e esgotou uma edição de 200 mil exemplares em três dias, muitos donos de livrarias se recusaram a receber o livro da ex-primeira-dama. Uma reportagem deu voz a alguns deles indignados com um livro “que deveria ir para a lata do lixo” e que conseguiu perturbar a famosa rentrée littéraire do mês de setembro, quando são lançados os grandes livros de ensaios e de literatura na França.
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Leneide Duart-Plon é jornalista, em Paris