Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O escritor devorado

Com as mortes recentes de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) e Ariano Suassuna (1927-2014), a prateleira de cima da ficção contemporânea brasileira povoou-se de grandes escritores invisíveis, naquilo que se pode diagnosticar como índice epidêmico elevado da “Síndrome de Rimbaud”, ainda mais agudo considerando-se que o meio literário nacional atrai de modo incomum os holofotes de festivais e feiras por todo o país e fora dele nos dias de hoje.

Trata-se de cenário controverso, no qual a nova geração de autores protagoniza performances públicas e ativa a vida literária imediatista por meio de redes sociais, enquanto medalhões de importância inquestionável se ocultam silenciosamente nas sombras.

Ambas as situações, diante dos prognósticos mais pessimistas e da relevância da literatura no mundo atual, parecem ser temporárias, ou mais do que isto: sugerem ser duas frações do todo, táticas distintas para um fim comum, a base oculta e a ponta visível de um idêntico iceberg –a indústria editorial sendo o seu Titanic.

É conhecida a trajetória de Arthur Rimbaud (1854-91): adolescente genial/genioso nascido em Charleville-Mézières, norte da França, levou prêmio acadêmico por poema em latim aos 15 anos, aos 17 enviou a Paul Demeny a “carta do vidente” (a do “eu é um outro”, mencionada em nove entre dez textos sobre a inovação da modernidade), escreveu o profético “O Barco Bêbado” e, aos 21, já havia baixado as portas de sua produção poética, adotando o nomadismo que o levaria à África, entre outros exílios, onde traficou marfim, peles e armas.

Rimbaud morreu alguns dias após completar 37 anos, em Marselha, e cabe certinho naquilo que Paul Valéry caracterizou como “o rigor das recusas”, o instante em que a literatura atinge o domínio da ética, pois, tendo chegado ao “ponto extremo, paroxístico, da irritação voluntária da função da linguagem, não podia fazer outra coisa a não ser o que fez –fugir”. E “c’est fini”, ao menos no que diz respeito à existência autoral –e “Uma Temporada no Inferno” passa a ser problema do leitor.

Com a mentalidade pragmática dos narradores, ao menos três ficcionistas brasileiros surgidos entre as décadas de 1950 e 1970 adotaram conscientemente semelhante estratégia autodissipadora: o mais eficaz deles, o curitibano Dalton Trevisan, 89, deu sua última entrevista em 1972, ao “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo”, e suas respostas vêm sendo repetidas desde então pela imprensa como um mantra da insignificância autoral com viés irônico.

Seu contemporâneo Rubem Fonseca, carioca da gema nascido em Juiz de Fora em 1925, não chegou a conceder nenhuma –levando-se em conta o laconismo das respostas surrupiadas por reportagem da “Ilustrada” em 2010, e recentes aparições no festival Correntes D’Escrita 2012, em Portugal, e na inauguração de biblioteca dedicada a operários que leva seu nome no Rio de Janeiro.

Fonseca, porém, emitiu seu estatuto maquiado em “Intestino Grosso”, conto-entrevista de “Feliz Ano Novo” (1975), no qual um autor aceita ser entrevistado na medida em que seja pago por palavra proferida. Termina propondo o “canibalismo místico”, nova religião ao modo de Swift, que criaria “o hábito de nos alimentarmos também com a carne de nossos mortos” e cujo lema seria “adote uma árvore e mate uma criança”.

Caso ligeiramente distinto é o do paulista Raduan Nassar (Pindorama, 1935), hoje com 78 anos e estigma de santo marxista: após escrever um punhado de contos inéditos em livro até 1994 e publicar os romances “Lavoura Arcaica” (1975) e “Um Copo de Cólera” (1978), abandonou a literatura.

Ao contrário de Trevisan e Fonseca, Raduan publicou apenas os contos de “Menina a Caminho” (1994), aparecendo na imprensa só por meio de meia dúzia de entrevistas, como a publicada nesta Folha em 1995, concedida a Elvis Cesar Bonassa. Nela, afirmou que “muito da literatura não vale um dente de alho”. E disse mais: que “o homem é uma obra acabada” e não apostava “no aprimoramento da espécie”.

A reclusão desse trio irascível torna o Brasil caso único na América Latina, cuja instabilidade histórica conclamou amiúde a presença física do grande romancista ao engajamento, seja em âmbitos institucionais como em universidades, fundações e partidos ou na militância jornalística, nem sempre equacionando compromisso político a rigor artístico.

Comparados a Vargas Llosa no Peru, Mempo Giardinelli na Argentina e Eduardo Galeano no Uruguai –para ficarmos apenas entre os vivos– Trevisan, Fonseca e Raduan tiveram a atuação relegada a bruxuleios fantasmagóricos no vazio de seus quintais privados, assombrando leitores de uma classe média igualmente omissa ao longo dos anos de chumbo, com relatos brutais e personagens lúbricos do facínora drama suburbano.

Sr. Leitor 

“O nascimento do leitor se paga com a morte do autor”, sentenciou Roland Barthes (1915-80) em um ensaio ao mesmo tempo seminal e letal de 1972, esticando ao limite certa linha de pensamento explorada anteriormente por teóricos como Maurice Blanchot e Michel Foucault, a fim de liquidar com o Sr. Autor, esse personagem surgido com a modernidade, “fruto da ideologia capitalista” e mero atravessador linguístico que logo deveria deixar a cena em prol de alguém que reunisse num só campo “todas as marcas que constituem o escrito”: e abram alas para o Sr. Leitor. É o que Barthes designou como “devolver o lugar ao leitor”, dando início à teoria da recepção.

Para nortear sua mirada, Barthes apoiou-se nas figuras de Stéphane Mallarmé (1842-98) e Paul Valéry (1871-1945): ambos sofreram bloqueios por décadas, experimentando exigentes oscilações entre o rigor da entrega criativa e a esterilidade de longos períodos em greve de linguagem.

Não mencionou, porém, Raymond Roussel (1877-1933), criador de procedimento de escrita baseado no uso de trocadilhos que eliminava o autor como sujeito, suas aspirações e idiossincrasias, ou sua identidade (a ausência se deve, muito provavelmente, à ingenuidade de Roussel, e por este ter sido objeto de Michel Foucault, num ensaio de 1963, que leva o nome do pré-surrealista). Sua invenção era, portanto, praticamente a máquina de escrever dessingularizada que muitos editores hoje adorariam ter à mão.

Na mencionada entrevista a “O Estado de S. Paulo”, Dalton Trevisan lapidou frases que ecoam a visão despersonificadora do crítico literário francês. Difícil saber se foi influenciado por Barthes, cujas ideias não fazem muito além de explicitar aquilo que Borges definiu melhor, ao afirmar que “um escritor se converte em si mesmo se perdendo” –na verdade a própria lógica da escrita de ficção sob perspectiva criadora.

Entre tais máximas, “só a obra interessa, o autor não vale o personagem” e “o conto é sempre melhor do que o contista” são repetidas a cada ocasião que se busca qualificar o anonimato do escritor curitibano em sua reiteração ultraconsciente de que ele “nada tem a dizer fora dos livros”.

Para aquém da francofilia teórica e da tirania do temperamento, o razoável é que a influência tenha vindo de mais perto, da New Hampshire onde J.D. Salinger (1919-2010) se escondia desde 1953.

Não passa de conjectura, cuja plausibilidade deve-se à proximidade etária de Trevisan e Fonseca aliada à popularidade do norte-americano que atingia seu auge quando os brasileiros urdiam respectivos recolhimentos, um na casa da rua Emiliano Perneta, outro num calçadão do Leblon.

Contra essa hipótese, deve-se considerar o defendido por Warren French em “J.D. Salinger”, de 1963 (publicado aqui pela Lidador em 1966), no qual evidencia-se que à altura da publicação de “Hapworth 16, 1924” (o “conto do cisne” da família Glass, publicado na revista “New Yorker” em junho de 1965), não estava clara para ninguém a defecção final de Salinger.

O Zeitgeist, como o atual, era propício a manifestações antiestablishment, e o marketing atraiu a fúria do criador de Holden Caulfield: em resposta à imagem apelativa da edição britânica de “O Apanhador no Campo de Centeio”, Salinger passou a proibir o uso de ilustrações nas capas dos livros.

Raduan Nassar, a partir da reedição de sua obra pela Companhia das Letras, adotou posição semelhante. Mas há quem não a compreenda, como o próprio French, que, em seu “J.D. Salinger”, assevera que, “se um escritor realmente desejar preservar sua vida particular, tudo indica que seria mais fácil tomar precauções antes de publicar, escrevendo sob pseudônimo, do que depois descobrir que ter admiradores pode constituir um grande aborrecimento”.

Enquanto Raduan se recolheu amplamente, os nomes de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda saltam com alguma frequência no noticiário. Na semana passada, o mais recente livro de Fonseca, “Amálgama” [Nova Fronteira, R$ 39,90, 160 págs.], foi escolhido finalista na categoria dedicada a contos e crônicas do Prêmio Jabuti. Trevisan, por sua parte, lança em novembro “Beijo na Nuca”, nova coletânea de contos, pela editora Record (veja pág. 8).

Além disso, a professora Berta Waldman prepara a terceira edição de “Do Vampiro ao Cafajeste”. À antologia original, de 1982, foram acrescentados 17 novos textos, inéditos em livro –o que se reflete no complemento do título: “E Outros Ensaios sobre a Obra de Dalton Trevisan”. A nova versão da antologia tem organização de Hélio Guimarães, da USP, e deve sair ainda neste semestre, pela Editora da Unicamp (veja pág. 3).

Vaidade 

Contudo a vaidade escolhe se manifestar sob os mais diferentes e bizarros disfarces, como demonstra um romance do argentino Sergio Bizzio, lançado em Buenos Aires pela Mansalva (2010) e editado também no Uruguai, em 2012: “El Escritor Comido” [Criatura, US$ 17 no site da editora].

Na trama, um escritor brasileiro “imensamente rico e famoso” graças aos “best-sellers com moral” que escreve, decide se fazer de morto. “Para quê? Para ver o que se dizia dele. Todo o resto já tinha.” Em suma, quis provar desse momento de “notoriedade negativa” (na precisa expressão de Beatriz Sarlo a respeito da anonimidade autoral), com “uma parte de brincadeira, duas partes de publicidade e três de vaidade”.

O avião de Mauro Saupol cai ao sobrevoar o Amazonas. O sortudo escritor de autoajuda sobrevive, escondendo-se em um hotelzinho de quinta, à espera de ler os jornais e assistir aos programas de TV que relatarão sua “morte”. No entanto o estardalhaço que esperava não vem, exceto por uma reportagem de quatro páginas na “Veja”.

“Duas eram de fotos, enfeitadas com boxes de texto onde não se dizia nada de importante, e as outras duas –em que também havia fotos, fotos velhas– não passavam de prosa escolar abarrotada de informações curriculares.” O título dizia “morreu um grande”, e isto o fez desejar “que seus pais estivessem vivos”. Logo depois o esquecem –não sem antes, porém, de Saupol descobrir, ao conferir numa “lan house” se ainda falavam dele, que a mulher o trai com seu biógrafo.

Com lances disparatados e capítulos que alternam conto policial, aventura e especulação metafísica, Bizzio leva seu personagem a se perder de vez, indo parar em uma “tribo canibal amazônica”.

Lá passa a ser adorado como um deus e devorado aos poucos em sinal de devoção. Quando é encontrado por uma equipe de jornalistas, já teve seu pênis degustado e tornou-se mulher.

“Haviam descarnado suas bochechas, o que dava à sua cabeça um aspecto de caveira, com ossos da mandíbula à vista; faltava-lhe o lábio inferior (os dentes apareciam apoiados sobre o queixo) e as duas orelhas.” Mesmo assim, Saupol retorna à civilização, onde sofre cirurgias plásticas que lhe atribuem nova aparência, publica a história de sua devoração e, ao ver suas fotos estampadas na mídia, conclui que não é mais Mauro Saupol –e “nem sequer é um escritor”.

Ao escrever “para ser procurado”, como afirma o narrador, Saupol escreve para ser visto. Quando isso não ocorre, deixa de se reconhecer e, enfim, pode morrer.

O romance de Bizzio é um entre dezenas de outros, que, ao lado de biografias e episódios ligados a escritores, o ficcionista e crítico literário argentino Patricio Pron aborda em “El Libro Tachado – Prácticas de la Negación y del Silencio en la Crisis de la Literatura” [Turner, € 19,90, 306 págs.], lançado na Espanha neste ano.

No ensaio, Pron explora as formas de dissipação da obra literária –por métodos combinatórios, restritivos, coletivos, por apagamento, suspensão, apropriação, censura, destruição ou mera perda– e de seus infelizes autores –desaparecidos, mutilados, presos, bloqueados, suicidas, colaboradores, falsificadores, anônimos, silenciados etc.

O levantamento maníaco realizado por Pron está fadado a se tornar obra de referência, com generosa anotação marginal, bibliografia e um trágico anedotário do destino de escritores, incluindo o desafortunado Mauro Saupol e sua adesão involuntária ao “canibalismo místico” pregado pelo personagem-escritor Rubem Fonseca.

“Ao mesmo tempo que questiona a unidade da obra literária, Bizzio propõe um relato sobre o desaparecimento deliberado e voluntário de um escritor cuja única relevância provém da atenção pública que consegue atrair com sua presença nos meios de comunicação”, analisa Pron. “Esta distrai do fato –muito relevante, por outro lado– de que sua obra não possui demasiado valor literário.”

Estendendo sua pesquisa do colapso da figura do autor à desaparição em si do autor, Pron relaciona as múltiplas maneiras inventadas ao longo de três séculos de existência da literatura (entendida como o romance em prosa) para desaparecer com ela, para tachá-la (que é o mesmo que censurá-la, criticá-la ou desaprová-la), até alcançar o cenário atual –com suas novas técnicas de dissipação, talvez mais sutis–, no qual o texto literário começa a ser substituído pelo personagem do escritor no palco dos festivais literários.

Ou, dito de outra forma, pelo simulacro do autor (que já não mais escreve, apenas age –atua, interpreta– como se escrevesse sem verdadeiramente escrever), como parte de um processo mais amplo de desautorização da escrita literária, o qual inclui o papel dos leitores na internet e, quiçá, a própria indústria que o criou e ora procura desautorizá-lo, colocando-o em outra atribuição.

“Quando começa a escritura, a voz perde sua origem, e o autor entra em sua própria morte”, afirma Barthes, descrevendo o processo do escritor de apagar as próprias marcas (um pouco como os felinos nas caixas de areia), ironizado por Dalton Trevisan naquela mítica entrevista ao mapear seu próprio futuro literário: “Há o preconceito de que, depois do conto você deve escrever novela e, afinal, romance. Meu caminho será do conto para o soneto e para o haicai” –e daí ao ponto ou suspiro final, ele não disse, mas é como se tivesse dito.

Raduan Nassar não sai perdendo em ceticismo. Em nota autobiográfica à 2ª edição de “Um Copo de Cólera” (Brasiliense, 1984), nunca mais reproduzida, listou diversas atividades que abandonou ao longo da vida, anunciando: “Estou perto de realizar o que mais queria ser quando criança: criador”. Em referência a outros escritores, pois já metamorfoseou-se em leitor, conclui: “Nada a ver, está claro, com a autossuficiência exclusiva dos artistas (estou falando simplesmente em criador de bichos [“¦] Aliás, se já suspeitei uma vez, continuo agora mais desconfiado ainda de que não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas”.

Legião 

Mauro Saupol, o escritor brasileiro criado por Sergio Bizzio, quando novamente se vê nas fotos, se desconhece. Assim, não lhe interessa mais ser visto e, em sua condição de autor sem obra, de mera estampa, não ser visto equivale ao fracasso literário. Já o Sr. Leitor de Roland Barthes hoje é legião on-line, cabeça multiplicada cuja identidade pulverizada, entre outros fenômenos representativos da crise da literatura aventados por Patricio Pron, “implica a possibilidade de dizer algo sem necessidade de se responsabilizar por sua autoria”.

Certa ideologia da gratuidade e do livre acesso aos textos originais “legitima o copiar e colar até o ponto de ser impossível e, talvez, desnecessário, estabelecer a autoria dos textos”, conclui Pron. E este é o ponto –quando a leitura torna-se pautada pela satisfação imediata e o texto difícil, portanto “de autor”, é tachado de “elitista” e “exigente”– em que deveríamos nos perguntar, afinal, que leitor é esse que está surgindo?

Todo final de época tem seu Titanic, e cada catástrofe exige o seu iceberg. Nesta hora, talvez exausto de servir às metáforas literárias, o iceberg da literatura se revela uma pirâmide invertida, cuja base oculta está representada pelos grandes escritores brasileiros invisíveis da atualidade, e seu cume visível, pela geração mais jovem que celebra o fim de uma era na qual a literatura como a conhecíamos perde sua relevância cultural.

A diferença é que o grande escritor devorado sai ganhando, ao preservar a liberdade do anonimato. De fato –considerando-se a drástica elevação do aquecimento global–, o futuro não reserva muitas felicidades a ambas as partes. Tudo acabará em água, na melhor das hipóteses. A etiqueta exige que não se mencione a pior.

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Joca Reiners Terron, 46, escritor e editor, é autor de “A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves” (Companhia das Letras)