Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vidas secas

Graças à internet, algumas publicações antes só impressas passaram a promover leituras coletivas, melhor dizendo, discussões em torno de um livro específico, que pode ser lido em qualquer formato mas comentado exclusivamente online. Funciona como um fórum de leitura em grupo, quase sempre centrado em obras ficcionais que estejam em evidência, seja a reboque de uma efeméride literária (os 60 anos de O Apanhador no Campo de Centeio, por exemplo, a refilmagem de O Grande Gatsby) ou de um fato do momento (um romance notável sobre a crise no Oriente Médio ou epidemias similares ao Ebola).

New York Times já promoveu algo nessa linha, mas por estas bandas a ideia, ao que me consta, não medrou. Imaginemos, porém, que acabamos de aqui lançar, para restrito desfrute de nossa edição digital, um troca-troca de observações literárias. Que livro escolheríamos? Eis o busílis. Os Dublinenses, que está comemorando seu centenário? Suave é a Noite, que chegou aos 80?

Deixemos esses dois para os gringos, pois também temos aniversariantes de escol nessa faixa etária. A primeira edição de São Bernardo é de 1934, a mesma idade de Suave é a NoiteCemitério de Elefantes acabou de virar cinquentão. Viva o Povo Brasileiro foi lançado em 1984. Se lhes apetecer poesia, lembrem-se que Itinerário de Pasárgada e Luta Corporal chegaram juntos aos 60 este ano.

Imagem graciliana

Se me coubesse escolher qual livro pôr na berlinda, partiria não de um título específico, mas de um assunto atualmente em destaque. Descartaria de cara as eleições porque, ao contrário dos americanos, não fizemos de campanhas políticas um subgênero literário (se bem que Agosto, de Rubem Fonseca, pudesse render um bom caldo), optando por um tema desgraçadamente mais duradouro: a falta de água, a seca – e suas ecotrágicas consequências.

Temos um marco dessa espécie que é Vidas Secas, de Graciliano Ramos, leitura sempre proveitosa, embora o ideal fosse um relato sobre os efeitos da falta de chuvas e da imprevidência hídrica numa cidade grande (nem precisava ser tão grande quanto São Paulo), ainda à espera de um narrador. O comportamento do atual (e futuro) governador de São Paulo diante da crise do Sistema Cantareira não daria um eletrizante thriller político-ecológico?

“Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.” Assim começa a saga de Fabiano e sinhá Vitória, o casal de retirantes de Vidas Secas, que pegamos no meio de uma caminhada de três léguas sob o sol escaldante da caatinga, cansados, sedentos e famintos, há horas à cata de uma sombra. Sinhá Vitória com o caçula escanchado no quadril e um baú de folha na cabeça; Fabiano sombrio, cambaio, bolsa de caça a tiracolo, cuia pendurada no cinturão, espingarda no ombro, seguidos pelo filho mais velho e a cadela Baleia. Ao redor, as manchas brancas das ossadas. No céu, dando voltas, os urubus.

Com sua mimética secura estilística, Graciliano escreveu nosso mais denso e compacto romance sobre a aridez do agreste nordestino e o estoicismo dos sertanejos. Por não ser um manual de autoajuda, Vidas Secas tem muito mais lições de ordem literária a oferecer do que dicas de sobrevivência no sertão crestado pela falta de chuva.

Mas algum proveito extraliterário talvez possamos extrair dele e de outras provações imaginárias produzidas pela escassez de água e correlatas calamidades. Será que o melhor a fazer é refugiar-se no escapismo e mergulhar em ficções que nos permitam esquecer dos cataclismos reais e imediatos ou enfrentar infortúnios de forma vicária, como os que Robinson Crusoe e os meninos de O Senhor das Moscas, isolados do resto do mundo, tiveram de encarar?

A ficção científica é uma mina de relatos escatológicos, um manancial aparentemente inesgotável de distopias, flagelos ambientais e hecatombes cósmicas. Descobri que os autores britânicos são mais obcecados por desastres climáticos e os americanos por doenças viróticas e epidemias. Como estamos à míngua de chuva e água, cercados por queimadas e espreitados pelo Ebola, qualquer um nos serve. Michael Crichton, autor de O Enigma de Andrômeda, confirma a regra; mas o também americano Cormac McCarthy a desmente: o inferno pós-apocalíptico de A Estrada não foi obra de um micro-organismo letal, mas o último estágio de uma catástrofe ambiental planetária, presumivelmente provocada pelo homem.

O inglês J.G. Ballard segue o padrão: infecção por vírus ou bactérias não era a sua cup of tea. O saudoso James Gregory Ballard talvez tenha sido o mais apocalíptico dos escritores contemporâneos, um David Cronenberg do romance. Interessei-me por seus pesadelos com relativo atraso, a partir do sexto romance, Concrete Island. Em quatro livros encadeados ao longo de quatro anos na década de 1960, ele destruiu a Terra com vendavais (Winds From Nowhere), inundações (The Drowned World), seca (The Burning World) e cristalizando tudo (The Crystral World). Que eu saiba, nenhum desses foi traduzido aqui.

Pelo menos o terceiro, reeditado com o título de The Draught (‘draught’ é seca, em inglês) e alguns acréscimos, merecia uma chance em nosso mercado editorial, mormente agora, com rios, açudes e reservatórios carentes de chuva e “chupados pelo sol”, para usar uma imagem graciliana, e matagais ardendo em chamas em diversos estados do País.

Desfecho otimista

Como Vidas Secas, The Draught (a edição inglesa sai por R$ 20,50 na Livraria Cultura) começa com o sol a pino e um médico, dr. Charles Ransom, ancorando sua casa flutuante na boca de um rio. Há duas estações não cai água do céu, os rios estão secando, peixes e pássaros mortos boiam no lodaçal dominante. Ransom quase não tem vizinhos e espera o momento certo para aderir ao grande êxodo rumo à costa, onde plantas dessalinizadas poderão mantê-lo vivo, para que continue espiando o céu e vigiando as nuvens, à espera de chuva.

Ballard usava a fantasia para criar pesadelos com elementos, horrores e ameaças da sociedade do seu tempo. Como morreu em 2009, perdeu apenas o agravamento do descalabro ambiental profetizado em seus romances. Chove no final de The Draught, mas não o bastante para dar ao livro um desfecho otimista. Traduzam logo. Tem tudo para virar best seller nas regiões desassistidas pelo Sistema Cantareira.

******

Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo