Criança, fui leitor voraz da revista O Cruzeiro, especialmente das seções “As aparências enganam”, de Carlos Estêvão, e “O impossível acontece”, em que José Cândido de Carvalho contava, com engenho e bom humor, episódios de coincidências, mistérios e assombrações. Nascido em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em 1914, e falecido na Niterói onde morava, em 1989, aos 22 anos começa a escrever o romance Olha para o Céu, Frederico!, surpreendentemente bem feito para um jovem que, não obstante já na folha de pagamento de jornais, apenas engatinhava na literatura.
O sucesso viria em 1964, com O Coronel e o Lobisomem, pela criação inédita, pelos neologismos saborosos, pela riqueza humana e pela força literária do excelente Ponciano de Azeredo Furtado, protagonista da história, uma das maiores e mais expressivas personagens de toda a ficção brasileira – tão famosa que virou até nome de rua, na cidade campista. Assim, 2014 é duplamente festivo para os amantes da boa prosa, pelo centenário do nascimento de José Cândido de Carvalho e pelos 50 anos do seu primoroso livro.
Como não rir gostosamente do discurso, cheio de invenções e de graça, desse coronel histriônico? Sobre mulheres: “Quando vejo um recurvado de moça bonita, eu só tenho um desejo: afundar nele de nunca mais ser visto. Nunca mais!” A propósito de seres do outro mundo: “Não é qualquer um comedor de farinha que pode lidar com lobisomem, bicho de muita astúcia no atacado e no varejo. Já se deu até o caso de um lobisomem ser coletor federal e outro mestre de letras em Campos de Goitacases.” E em propaganda de si mesmo: “Diante de meu charuto muito doutor de lei ficou menor do que um anão de circo de cavalinho. Aviso que não foi para enfeite que Deus montou este Coronel Ponciano de Azeredo Furtado em feitio de palmeira.”
O conto e a crônica
Com talento incomum, José Cândido de Carvalho renova a língua pelos adjetivos que faz nascer de substantivos (recatoso, mulherista, defunteiro, pescoçoso) e por adverbializar o que advérbio já é (menasmente, pra trasmente, talqualmente). À semelhança, observará alguém, do prefeito Odorico Paraguaçu n’O Bem-Amado, cujo autor o romancista acusava, publicamente, de ter-lhe plagiado a linguagem, vez que a versão original da peça, publicada em 1960, era “um melancólico depósito de lugares-comuns, sem brilho e sem centelha”, posteriormente reeditada com o estilo d’O Coronel e o Lobisomem, lançado em 1964.
Pouco antes de morrer, escreveria Zé Cândido, mordaz e ressentido: “É claro que Dias Gomes não leu meu livro – simplesmente sugou a obra como um Drácula de terreno baldio, com a suprema vantagem de não pagar pedágio nem direitos de trânsito ao verdadeiro inventor dessa linguagem, no meu caso barroca, no caso dele, rococó.” E finalizava, desdenhoso: “Em síntese, tirantemente o que não é seu, o sr. Dias Gomes fica reduzido a nada. Ou melhor, a um vampiro de peruca” – alusão impiedosa ao adereço capilar com que o teatrólogo escondia a careca…
Em 1974, o criador do Ponciano fanfarrão empossa-se na Academia Brasileira de Letras, com um dos mais breves e hilariantes discursos até hoje proferidos na Casa de Machado de Assis. Lá nos encontramos em 1988, quando lhe perguntei, ao telefone, se seria possível conhecê-lo: “Sim, claro! Uma vez por semana, atravesso a Baía da Guanabara e vou ao Rio, para o chá da Academia. Que tal na próxima quinta?” Chego e sou encaminhado ao salão onde já me espera, o paletó frouxo a realçar-lhe a magreza. Começo, claro, pelo Coronel, com a admiração por sabê-lo, de início, um conjunto de pequenas histórias, mais para o conto e a crônica, depois transformadas em romance, desafio literário que poucos vencem. “Pois é, o Herberto Sales contou isso quando me recebeu aqui na Academia. Como a editora de O Cruzeiro, revista onde nós trabalhávamos, não tinha ideia de quando publicaria o livro, peguei de volta os originais para reescrever tudo aquilo, não mais como casos, mas como uma história longa, a que o Coronel Ponciano desse unidade e sustança. Acho que valeu a pena…”
“Passa a tropa paramentado de fardão”
Conversamos sobre o filme dirigido por Alcino Diniz em 1978 – primeira adaptação do romance para o cinema, com Maurício do Valle no papel principal – e a novela de Chico de Assis para a TV Cultura, em 1982, protagonizada por Jonas Mello.
Quando lembrei a coluna “O impossível acontece”, contou uma experiência pessoal: “Acredito no mistério, no inexplicável. Certa vez, finalizava uma crônica em cima da hora de pegar o avião para o exterior. Procuro o passaporte nos bolsos, nas gavetas, entre os papéis sobre a mesa… e nada, simplesmente sumira! Perco o voo, é claro, e naquela mesma noite minha mãe morreria. Quando volto a trabalhar, levanto a máquina de escrever… e lá está o passaporte, que não sei como fora parar ali. Obra do acaso? Pode ser, mas prefiro pensar que tudo foi para que eu não viajasse naquele dia.”
Gentilmente, autografa o exemplar que levei: “Para Edmílson Caminha, lembrança do coronel de mentira, seu admirador José Cândido de Carvalho. Outono de 1988”. Ao que Ponciano, com certeza, teria retrucado na bucha: “De mentira?! Desconcordo! Zé Cândido é coronel até debaixo d’água, de não abrir pra um trem carregado de minério, useiro e vezeiro em amofinar jagunço e botar pra correr onça-pintada. Farda pra ele é pouco: passa a tropa em revista paramentado de fardão, o peito bordado a fio de ouro e a espada no cós das calças, pra punir com capação o desaforo de quem não junte os calcanhares e lhe bata a devida continência…”
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Edmílson Caminha é escritor, jornalista e professor