Zuenir Ventura passou boa parte da vida na rua, no meio do redemoinho. Agora, aos 83 anos, o autor de reportagens premiadas, como a série dedicada a Chico Mendes, que deu origem ao livro “Chico Mendes – Crime e castigo” (Companhia das Letras), dá um breve tempo na rua para entrar na Casa de Machado de Assis. Eleito na semana passada para a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras (ABL), no lugar de Ariano Suassuna, morto em julho, o colunista do GLOBO tomará posse em março. Será conduzido ao posto pela também imortal Cleonice Berardinelli, sua professora de Letras na então Universidade do Brasil. Enquanto isso, Zuenir diverte-se com o assombro respeitoso dos transeuntes ao ver um imortal na Praia de Ipanema.
O jornalista/escritor preocupa-se, com leveza, diante do interesse de duas prefeituras em pagar por seu fardão: a de Além Paraíba (MG), onde nasceu, e a do Rio, onde mora. Como a cidade mineira tem orçamento menor, ele está inclinado a aceitar a oferta carioca. Autor de “Cidade partida” e “1968 – O ano que não terminou”, entre outros, Zuenir agora prepara um musical sobre o envelhecimento, com os amigos Ziraldo e Luis Fernando Verissimo. Nesta entrevista, ele fala sobre a eleição para a ABL, relembra sua carreira e reflete sobre os desafios do jornalismo.
Qual foi a reação das pessoas próximas com sua eleição para a ABL?
Zuenir Ventura – Hoje eu estava andando no calçadão e várias pessoas gritavam: “Ô imortal! Ô imortal!”. Fiquei impressionado com a popularidade da Academia. Quando me perguntaram o que mudou na minha vida, eu disse: mudou que agora vou precisar usar gravata duas vezes por semana. Mas estou com a alma em festa. Nunca tinha sido eleito nem para síndico (risos).
Você já falou que a inveja é um dos piores pecados e até escreveu um livro (“Mal secreto – Inveja”) sobre o assunto. Já se protegeu contra o olho gordo depois da eleição?
Z.V. –A melhor maneira para combater a inveja é admitir que ela existe. Todo mundo teve ou vai ter. A inveja é pior para o invejoso do que para o invejado. O invejado não sofre. Para se proteger contra ela, o melhor é não ficar muito arrogante, muito prosa. Receber esse tipo de honraria com humildade. Tanto que havia o negócio do ostracismo na Grécia antiga: quando as pessoas ficavam mais célebres, havia a recomendação de desaparecer um pouco do, digamos, noticiário.
Jornalista não costuma virar notícia. Como é estar do outro lado?
Z.V. –É realmente estranho. Sobretudo quando você vê aquele batalhão de fotógrafos, com aquelas câmeras que parecem canhões. Nesse tipo de situação, o acontecimento que mais circulou foi o boato da minha morte, há alguns anos. Eu estava num lugar sem sinal de celular. Quando saí, veio aquele pelotão de repórteres: “Como você está se sentindo?” Eu disse: “Olha, eu, do outro lado, estava muito mais tranquilo.” Foi culpa de um número de telefone antigo meu, para o qual as pessoas ligavam, e atendia uma mulher. Ela, já irritada com isso, disse a um repórter: “Ele morreu hoje de tarde. A Mary (mulher do jornalista) está inconsolável”. Meu filho ficou me procurando durante três horas. Jesus levou três dias para ressuscitar. Eu levei três horas.
As pessoas também se assustaram com sua queda de pressão no dia da eleição para a ABL?
Z.V. –Pois é, quando saí para caminhar, no dia seguinte, as pessoas ficavam me olhando com cara de espanto: “Ué, mas ele não morreu?”. Eu só pensava que não posso morrer, porque iria desmoralizar a imortalidade. Mas lido com bom humor. No meu DNA, estava escrito que eu seria careca e otimista. Sobretudo, otimista.
Depois da ABL, ainda há algo que você queira?
Z.V. –Falta muita coisa (risos). Já ganhei mais do que merecia em termos de felicidade. Mas não faço planos e prego o “carpe diem”. Não olho para trás, mas também não olho para a frente.
Algum livro novo a caminho?
Z.V. –Livro, não. Mas tem o musical sobre a velhice que eu, Ziraldo e Verissimo estamos fazendo. Não é tanto sobre a velhice, mas sobre três velhos escrevendo sobre a velhice. É uma perspectiva para cima. Até por eles serem dois dos melhores humoristas do país.
Aos 83 anos, há alguma reportagem que você ainda queira fazer?
Z.V. –Digo sem cabotinismo que fiz duas grandes reportagens. Mais pelas circunstâncias do que pelo trabalho em si. Uma foi a reportagem em Vigário Geral que gerou o livro “Cidade partida.” Outra foi sobre Chico Mendes (que virou o livro “Chico Mendes – Crime e castigo”), uma experiência radical também do ponto de vista existencial. Recebi muita correspondência do Acre, inclusive do juiz que fez as coisas andarem no caso Chico Mendes. Teve também o Genésio dos Santos, a testemunha que levou os assassinos para a cadeia e que eu trouxe para o Rio comigo. Ele era um menino. Eu, que levei a vida dizendo que repórter não podia se misturar com a notícia, trouxe a notícia para dentro de casa. Ele ia ser assassinado. Eu tinha duas opções, descrever a morte ou evitá-la. Preferi a segunda.
Genésio foi o maior dilema ético que você enfrentou?
Z.V. –Um deles. Vigário Geral também foi complexo. A favela estava dominada por uma facção, e era preciso conviver com aquilo. Só aí entendi que a visão de comunidade cúmplice do crime era uma distorção. O que eu via era convivência, mas não conivência com o tráfico. Porque a convivência era inevitável. Você fica ao lado do mal. Como noticiar aquilo?
Você ainda se considera de esquerda?
Z.V. –Direita e esquerda são conceitos que mudaram muito. Na minha época, havia muito maniqueísmo, eram posições inconciliáveis. Hoje, se você considerar algumas preocupações que tenho, dirá que ainda sou de esquerda. Se ser de esquerda ainda for querer liberdade, democracia e justiça social, então sou. Mas ser de esquerda hoje é muito diferente do que era. Basta ver as últimas eleições. O grande antagonismo entre os dois partidos era mais de idiossincrasias do que de ideologia.
Para quem viveu a ditadura, como é ver manifestantes semana passada pedindo uma intervenção militar no país?
Z.V. –Isso é uma loucura. Como pode, depois de tanto tempo? Só não me assusta tanto por ser uma parcela pequena da população. Isso mostra um desconhecimento da História. Por isso, sempre acho que temos que trazer a memória para o presente. A epígrafe do meu livro “1968 – O ano que não terminou” é do Mário de Andrade, dizendo que temos de servir não de exemplo, mas de lição. Uma manifestação como essa é anacrônica, fruto da ignorância política.
Há quem diga que junho de 2013 deu início a um ciclo novo no Brasil. Depois disso, 1968 acabou?
Z.V. –Não é bem assim. O processo de junho de 2013 foi meio que interrompido. Houve uma deturpação daquele movimento pela infiltração de um radicalismo meio irracional. Isso assustou as pessoas. Logo depois, havia meia dúzia de gatos pingados se manifestando. Em 1968, havia duas vertentes. Uma, democrática, dizia que só o povo organizado podia derrubar a ditadura. A outra dizia que só o povo armado era capaz disso. Prevaleceu a vertente democrática. O processo de 2013 foi abortado no meio. Claro que nossa democracia é incompleta, mas você pode se manifestar pelas vias democráticas.
A ética jornalística hoje é um grande questão. E fala-se muito, passadas as eleições, em regulação da mídia. Qual é a sua opinião a respeito?
Z.V. –Isso esconde impulsos autoritários. Encobre um pouco um desejo de censura que vem sempre do poder. Quem está sujeito à crítica sempre acha que é preciso controlar a imprensa de alguma maneira. O ideal, para o poder, é que a imprensa pense a favor. Essa história de imprensa de oposição só é agradável para quem não está no poder. Acho que a sociedade hoje não vai admitir uma coisa dessas. Por mais que vejamos manifestações dizendo que a imprensa se excedeu, é muito melhor assim. Quem viveu a ditadura sabe. Hoje há quem diga que na ditadura não tinha violência nem corrupção. Tinha sim, mas não se sabia. Hoje o país é um nervo exposto. Às vezes cheira mal, mas você está vendo tudo. Tem que ser assim.
Depois do escândalo dos documentos da CIA, vazados por Edward Snowden, fala-se muito que o novo jornalismo será feito por ativistas no lugar de grandes empresas. O que acha disso?
Z.V. –Vejo com bons olhos, mas com cuidado. Acho que tudo tem espaço. Há um campo para a Mídia Ninja, mas não é o caminho único. Na internet, há um jornalismo que eu acho discutível, porque ela possibilita a publicação de uma informação sem nenhuma checagem. É preciso saber que existe uma hierarquia do saber. Há pessoas que sabem mais do que nós – e o jornalista precisa recorrer a elas. Você não é jornalista só porque viu um acidente na esquina.
Há dois anos, você fez sua estreia na ficção, com “Sagrada família”. Há duas correntes, uma dizendo que o jornalismo faz mal para a literatura e outra, que faz bem. De que lado você fica?
Z.V. –A disciplina com a linguagem que o jornalismo dá ajuda muito. Mas, nessa experiência com a ficção, o melhor foi a sensação de liberdade. Descobri que podia mentir. Na ficção, quanto mais você fingir, melhor. Eu acho que o jornalismo ajuda. Temos Hemingway, com uma escrita influenciada pelo jornalismo. E também o jornalismo literário, que não é uma expressão muito boa, mas que é uma reportagem que pede emprestados à ficção alguns recursos expressivos. Nosso maior jornalista literário foi Euclides da Cunha, com “Os sertões”.
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Maurício Meireles, do Globo