“Isso é realmente um poema: uma frase que te cala”, diz um testemunho do documentário Só dez por cento é mentira, de Pedro Cezar. O filme, de 2008, fala sobre o poeta Manoel de Barros, quem costumava afirmar, justamente, que “a poesia não é para descrever, é para descobrir”. Manoel, com sua obra poética, produzia esse exato efeito – o do assombro e da descoberta.
Um dos maiores autores brasileiros, nascido em 1916, em Cuiabá, ele faleceu na manhã desta quinta-feira em Campo Grande, no Mato Grosso, onde morava. Estava internado desde 24 de outubro por conta de uma cirurgia de desobstrução do intestino. Apesar de estável nos últimos dias, seu quadro de saúde piorou, e o poeta sofreu de uma falência múltipla de órgãos aos 97 anos.
Sua obra inclui 18 livros de poesia, além de livros infantis e relatos autobiográficos, e lhe rendeu inúmeros prêmios literários. Entre eles, dois Jabutis, por O guardador de águas, de 1989, e O fazedor do amanhã, de 2002. Sua escrita, artesanalmente construída, perseguia uma simplicidade constante, que para ele nascia da força das palavras, jamais de uma ideia romântica e etérea de inspiração. Os sermões do Padre Antônio Vieira, do qual era leitor assíduo, foram sua escola para descobrir a “beleza de uma sintaxe perfeita”.
O livro sobre o nada, de 1996, é seu trabalho mais conhecido, no qual ele desenvolveu sua linguagem própria, que batizou de “idioleto manoelês arcaico”. Mas ele gostava mais do primeiro livro de poesia que escreveu, Poemas concebidos sem pecado, de 1937, que considerava o seu melhor. Cronologicamente, está vinculado à Geração de 45, mas, formalmente, se alia com a escola modernista. Era frequentemente comparado a Guimarães Rosa e Fernando Pessoa.
Recluso e tímido, afim às conversas mas avesso às entrevistas, Manoel era um devoto do mundo infantil, com “esse absurdo inverossímil que a gente vê”, como ele define, “mas com muita estética”. Que um documentário como Só dez por cento é mentiraexista, é quase um presente do acaso, assim como o curta Caramujo-flor, rodado por seu conterrâneo Joel Pizzini em 1989 na forma de um ensaio visual baseado em sua vida e sua obra.
Dizem seus netos, que são oito ao total, que já não tinha vontade de viver. Seus últimos seis meses com o coração batendo foram sem ler, nem escrever, e se alimentando por uma sonda. Mas o que lhe afligia mais era a ausência dos dois filhos homens, João Wenceslau, que morreu em um acidente de avião em 2005, e Pedro, vítima de um AVC em 2013. Manoel vivia aos cuidados da esposa Stella, com quem se casou em 1947, e da filha Martha, que afirmou que “ele vinha se apagando como uma velinha”.
Em 2013, ele escreveu seu poema derradeiro, intitulado A turma, que retrata perfeitamente esse seu belo – em todos os sentidos – mundo infantil, sem nada descrever, sempre a inventar. “Quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”, ele dizia. Esse e outros poemas estão disponíveis pela editora Leya, que publicou em fevereiro uma caixa com sua poesia completa. Mais virá por aí no segundo semestre de 2015, segundo o que anunciou a Alfaguara (Objetiva), que adquiriu sua obra em outubro.
Manoel de Barros era generoso, nas palavras e no trato, e talvez por isso tenha demorado a conquistar a tal da fama, ainda que tenha sido, em muitos momentos, o poeta mais lido do país. Seus admiradores são muitos e entre eles estão Carlos Drummond de Andrade – que afirmou que ela era “o maior poeta vivo do Brasil” – e Millôr Fernandes, grande responsável por torná-lo amplamente conhecido nos anos 80. Mas nada disso lhe importava.
Veja também
O documentário Paixão pela palavra, sobre o escritor Manoel de Barros
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Camila Moraes, do El País