Em todo primeiro dia de aula de sua turma de biblioteconomia na Universidade de Hamburgo, o professor Olaf Eigenbrodt, diretor do Departamento Central de Serviços e Atendimento ao Leitor da Biblioteca Estadual Universitária Carl von Ossietzeky, pergunta a seus alunos por que escolheram aquele curso de graduação. Ou seja, por que querem ser bibliotecários? Àqueles que respondem simplesmente que optaram pela carreira apenas porque gostam de livros, a réplica de Eigenbrodt causa espanto: “Digo para escolherem outra profissão.” A justificativa para a recomendação radical esboça o perfil exigido do bibliotecário do século 21.
É claro que o amor aos livros, destaca o professor, continua sendo um critério importante. A era informática, no entanto, revolucionou o conceito de biblioteca e passou a exigir daquele que trabalha com acervos – físicos ou digitais – habilidades cada vez mais sofisticadas. Os profissionais do setor, há muito tempo, estão conscientes dessa metamorfose e de tudo o que ela demanda de conhecimento de tecnologia. Mas os leitores – sobretudo os brasileiros, por causa da grande desigualdade entre as instalações das bibliotecas do país – muitas vezes ignoram as possibilidades da chamada biblioteca 2.0 (ou já seria 4.0?).
“A biblioteca tradicional era aquele símbolo da cidade, ficava na praça principal, mas hoje ela está nas redes sociais, está no Twitter, no Facebook, na infinidade de produção. E o conhecimento suscita perguntas frequentes para os quais muitas vezes não temos respostas. Assim, o desafio do bibliotecário é sair e buscar o nosso leitor, o nosso usuário nas redes e outros espaços digitais”, resume a alemã Julia Bergman, consultora em bibliotecas digitais, que, ao lado de Eigenbrodt e outros especialistas estrangeiros, estiveram recentemente no Brasil para participar do Seminário Bienal do Livro para Bibliotecários e Profissionais de Informação, promovido pela Câmara Brasileira do Livro. “Precisamos oferecer ao leitor algo que ele nem esperava encontrar em uma biblioteca. Precisamos surpreendê-lo: olha, veja o que posso fazer por você”, diz.
A biblioteca, explica Julia, segue a mesma megatendência de todo o setor comercial, de varejo, de turismo, que é proporcionar experiências. É a mesma filosofia das livrarias. Em tese, o consumidor poderia comprar qualquer coisa que necessitasse sem sair de casa, apenas com um clique no site certo. O mesmo ocorre com o conhecimento, os livros digitais ou físicos. Qualquer informação está disponível e, assim, a rigor, a biblioteca tradicional seria dispensável como espaço de acervo. Mas as bibliotecas, como as livrarias, enfrentam o desafio de ir muito além da oferta de livros. E o bibliotecário, assim como o livreiro, é um curador de programas, eventos, experiências e, acima de tudo, “desbravador do mundo digital”. Ou, para usar a nomenclatura contemporânea, o cientista da informação.
Na Europa, as bibliotecas 2.0 começam a encantar com a arquitetura dos prédios, os espaços conceituais para eventos, co-working, isto é, tudo muito além de sofás, wifi e cafezinho. Julia cita bibliotecas que seduzem com os dispositivos digitais interativos instalados já na entrada do prédio, nos quais com um toque em telas o usuário faz um tour pelo acervo e, em minutos, pode escolher atividades que vão de ler a conhecer edições raras ou participar de games com outros frequentadores. Ou ainda conhecer toda a história de sua rua, por exemplo, “folheando” telas com fotos e informações sobre a origem de sua cidade, seu bairro e até sua casa ou prédio. “A biblioteca 2.0 atende a um conceito de o espaço funcionar como um indutor da inclusão digital e de mediação do conhecimento na sociedade atual, seguindo o dizer do teórico americano Douglas Rushkoff, de que, hoje, ou você é um programador [do software] ou é programado.”
A função da biblioteca seria transformar o indivíduo não apenas em leitor, mas programador do seu conhecimento, capacitá-lo para estabelecer conexões com a sociedade. Uma das experiências desenvolvidas em bibliotecas da Alemanha, um dos três países mais envelhecidos do planeta, por exemplo, é estimular a convivência intergeracional. Uma delas criou um campeonato de game (estilo quiz) no qual a dupla competidora já ganhava pontos quanto maior fosse a diferença de idade entre os dois participantes.
Função social
Os números da inclusão e do atual estágio dessa empreitada na Europa surpreendem. Na Catalunha, onde o Estado empenhou grande esforço para modernizar as bibliotecas por meio do programa Sistema Público de Leitura (SPL), metade da população da região tem uma carteirinha de usuário. São 3.368.603 carteirinhas. “Há dez vezes mais sócios de bibliotecas do que sócios dos primeiros cinco times de futebol da liga espanhola”, compara Carme Fenoll, diretora do Serviço de Bibliotecas Públicas da Catalunha. O número de sócios cresce desde 2008. No ano passado, a rede de bibliotecas registrou mais de 16 milhões de exemplares emprestados. São 4.567 computadores em bibliotecas só na Catalunha. Esses dados são resultados de trabalho governamental envolvendo as bibliotecas com livreiros, editores e autores, entre outros profissionais da cadeia econômica do livro.
O programa iBiblio, destaca Carme, permite fazer a gestão de empréstimos de livros digitais e acesso a aplicativos de leitura em dispositivos Android e Apple iOs. Neste ano, o Ministério de Educação, Cultura e Desporto da Espanha está levando a experiência catalã para todo o país. O governo quer ampliar para todos os espanhóis os modelos dos 691 clubes de leitura da Catalunha e promover colaborações como a escolha dos leitores VIPs (são 13.500 catalães) que votam em livros para os editores reeditarem, promovem concursos literários e servem de pesquisa permanente para as editoras e sistemas de autoedição.
Em outra comunidade autônoma, Castilla y León, os espanhóis promovem uma ação de integração das bibliotecas de museus. Uma das iniciativas, conta Araceli Corbo, da Biblioteca do Centro de Documentação de Castilla y León, é atrair todo o conteúdo que moradores da região produzem sobre suas cidades. No Museu de Arte Contemporânea da comunidade, os visitantes são convidados a conhecer como era, séculos atrás, o lugar onde moram. “A curiosidade é imensa e são muitas descobertas. Por isso, o material produzido hoje, sem muita consequência, de brincadeira, pode ser um documento histórico no futuro e procuramos estimular as pessoas a disponibilizá-lo”, afirma. A ação envolve ativistas digitais, promove reuniões para promoção de software livre e ainda estimula a participação de crianças nas atividades de registro histórico.
Em tempos de crise, a realidade das bibliotecas mundo afora também é marcada por restrição orçamentária e toda sorte de dificuldades para mobilizar recursos. No entanto, a mentalidade na Europa, nos Estados Unidos e em vizinhos latino-americanos, como Chile e Colômbia, sobre o papel que a biblioteca 2.0 pode desempenhar na sociedade possibilita um trabalho cada vez mais promissor. No Brasil, além da desigualdade abissal entre as bibliotecas públicas – poucas 2.0 e quase a maioria na era analógica –, os profissionais precisam vencer uma certa resistência dos governantes. “Já fiz muitas bibliotecas pelos municípios e, quando o projeto fica pronto, ouço do prefeito: olha ficou tão bom, tão bom que estou pensando em nem mais ser biblioteca! É uma visão que ainda impera no Brasil”, testemunha Adriana Ferrari, presidente da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (Febab).
Responsável pela criação da Biblioteca São Paulo, no Parque da Juventude (onde funcionava o complexo prisional do Carandiru), Adriana enumera alguns problemas enfrentados pelas bibliotecas brasileiras por desequilíbrio nas políticas públicas, como a questão do livro digital – “que ainda sofre resistência das editoras” –, a visão dos governantes, a restrição de recursos. “Mas o maior problema é a filosofia, digamos assim, é entender o que esses países estão nos dizendo que uma biblioteca é e pode ser, que poder ela tem de transformação e sua função social. Como discutir biblioteca do futuro se não temos a biblioteca do presente?”, questiona. Em sua opinião, o Brasil precisa desenvolver um sentimento de pertencimento da biblioteca na sociedade, nos municípios, para que ela seja defendida.
Política do livro
Um dos fatos para mostrar as possibilidades das bibliotecas brasileiras na construção da cidadania digital é uma experiência vivida por Adriana na Biblioteca São Paulo, onde recebe 30 mil pessoas por mês, muitas albergadas, desempregados e estudantes da periferia paulistana. Como forma de orientar o uso do acervo e mostrar aos usuários a melhor maneira de encontrar a informação de que precisavam, a biblioteca exibia um filmete de apresentação na entrada. Como a procura por jornais impressos era grande, alguém teve a ideia de incluir no filme a seção de empregos. O retorno foi imenso. Muitos conseguiram emprego depois de assistir ao filme. Casos como esses inspiraram uma “Agenda Cidadã” que Adriana Ferrari implementou em 36 municípios paulistas com o objetivo de transformar a biblioteca em uma “rede de informação” para a sociedade com a esperança de que assim possam surgir seus defensores. “Precisamos blindar as bibliotecas”, concorda Renato Lessa, presidente da Biblioteca Nacional.
As bibliotecas brasileiras de maior sucesso tiveram grandes defensores. Um dos exemplos principais é o acervo de José e Guita Mindlin doado à Universidade de São Paulo. De uma casa particular no Brooklin, onde o acesso era restrito às possibilidades de atendimento de uma casa transformada em um dos maiores acervos históricos do país, a biblioteca dos Mindlin é hoje um ícone do modelo 2.0 no Brasil. Todo o acervo passou por avançado processo de digitalização cujo sistema de busca é capaz de reconhecer caracteres especiais de livros antigos. “A disponibilização dos arquivos permite ainda que o pesquisador possa realizar, com relativa facilidade, a comparação entre edições da nossa ou de outras bibliotecas digitais, do conforto de sua própria casa e da forma como mais achar conveniente. A possibilidade de realizar a pesquisa de qualquer lugar, não a limitando às paredes da própria biblioteca, é outro grande avanço, ainda mais atualmente em que a mobilidade é tão comum”, afirma Giuliana Ragusa, vice-diretora da Biblioteca Brasiliana Mindlin.
A integração digital atualmente é um dos focos da Biblioteca Nacional, no Rio. Dois projetos serão iniciados em dezembro. O primeiro é considerado por Lessa o maior intercâmbio no âmbito cultural entre países de língua portuguesa. Consiste na Biblioteca Digital Luso-Brasileira, uma plataforma de troca de acervo que impedirá o retrabalho de digitalização de obras em português. “O que um digitaliza passa para o outro”, explica Lessa. O segundo projeto é uma parceria com o Instituto Moreira Salles, detentor de um dos maiores acervos fotográficos do país. Em uma biblioteca digital fotográfica (um site) – a Brasiliana Digital de Fotografia – serão oferecidas para consulta as imagens dos dois bancos de dados.
“Os recursos digitais são complementares aos físicos, por isso o bibliotecário precisa ser quase um arqueólogo. Aqui na Biblioteca Nacional, nossos profissionais fazem descobertas fantásticas. Isso precisa ser tirado de um depósito morto para o usuário poder viver a experiência da biblioteca em sua plenitude, ou seja, ler, interpretar o conteúdo e elaborar para fortalecer sua existência e sua cidadania”, resume Lessa. “As bibliotecas do século 21 não podem ser como as de [Jorge Luís] Borges, um mistério para si mesmas.” A Biblioteca Nacional, por sua importância legal, tem um orçamento anual de R$ 50 milhões e cerca de 400 funcionários nas atividades fins e mais 300 terceirizados (limpeza, segurança etc.). “O orçamento é significativo, mas, claro, para chegarmos ao estágio de uma biblioteca do Congresso Americano ou a Biblioteca Nacional da França seria necessário o dobro”, calcula.
Lessa é otimista. As recentes mudanças no organograma do Ministério da Cultura, segundo ele, são o primeiro passo para uma nova política do livro no Brasil. Até 2011, a política do livro e a das bibliotecas estavam acopladas em uma só instância. Agora serão desmembradas em duas, o Sistema Nacional de Bibliotecas e a Diretoria do Livro e Leitura. “Isso vai agilizar a política do livro, reduzir a burocratização de apenas ser um órgão de administração de convênios e passar a ser um elaborador de políticas públicas na área e é o primeiro passo para a recriação do Instituto do Livro, que cuidaria especificamente de políticas de estímulo à leitura.” Um passo pequeno diante da desvantagem internacional. Mas pode ser um passo imenso para as bibliotecas brasileiras ingressarem no futuro.
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Jorge Felix, para o Valor Econômico