Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Conformismo e coonestação

A desimportância da Academia Brasileira de Letras emudeceria até Lobão. Ninguém liga para ela, exceto os 40 autoproclamados imortais. Que eles desfrutem em sossego do privilégio de se fantasiarem de fardão pela eternidade afora.

A Academia é um clube cujos sócios, em graus variados de senectude, se reúnem para tomar chá e trocar dous dedos de prosa acerca de seus sublimes antecessores.

Na plêiade de intelectuais que a engrandeceram figuram eruditos do quilate de Getúlio Vargas, autor de A Polaca, a Constituição do Estado Novo. E Aurélio de Lira Tavares, o viril ponta-de-lança da Junta Militar, que adotou um heterônimo mimoso – Adelita – formado pelas suas iniciais.

Vargas não conseguiu escrever nem o bilhete de suicida. Teve um apagão criativo e embatucou no rascunho da Carta Testamento, tendo de recorrer a um ghost-writer.

Já o sensível general Adelita perpetrou de próprio punho o pujante Nosso exército, essa grande escola, bem como os versos inesquecíveis da “Canção da Engenharia”, que ainda hoje assobiavam na padaria.

É perda de tempo criticar a Academia. Não importa que ela sobreviva à sombra do Estado. Que jamais tenha emitido um sussurro contra a censura e outros paus-de-arara na vida cultural. Que cultive a mediocridade literária (Nélida Piñon, Murilo Melo Filho etc.) e a bajulação de poderosos (Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel etc.). Ninguém liga.

Não vale nem notar que muito acadêmico não tem obra e a instituição não é representativa. Ela deveria representar quem, ou o quê? Os beletristas de tirocínio, ou ao menos operosos? O estágio atual das letras nacionais? O espírito do tempo?

Tudo isso é fugidio, não vale o espadim que os acadêmicos mais serelepes, Ivo Pitanguy à frente, amam esgrimir de brincadeirinha no chá das quintas-feiras.

Fardão-ostentação

Que os membros do clube, pois, façam bom uso dos jetons, do escritório a que têm direito no centro do Rio e do mausoléu que os aguarda em Botafogo, no cemitério de São João Batista. Requiescat in pace, diria um deles.

A Academia só deixa de ser inócua quando nela entra um poeta de verdade. Isso é chato porque as más companhias têm influência e a instituição os diminui individualmente: todos os ratos são pardos no Petit Trianon.

É o que fatalmente se dará com Ferreira Gullar (colunista dominical da Folha), cuja posse na sua cadeira cativa no clube está marcada para a próxima semana.

“A Academia já fez tudo para eu entrar lá, e eu digo: não. Jamais entrarei para a Academia”, afirmou Gullar numa entrevista de agosto de 2011. “Como eu não tenho cabeça acadêmica, como não é a minha, não vou entrar lá.”

Pois não é que Gullar virou sócio remido da seleção canarinho das belas letras?

Disputou uma cadeira que já foi ocupada pelo bucaneiro Assis Chateaubriand. Submeteu-se ao vexame de cabalar votos. Fez a prova do alfaiate.

E agora deve estar à cata de elogios raros ao confrade e conterrâneo José Sarney, com os quais abrilhantará o seu discurso de posse.

Precisava? Gullar fez uma poesia rebelde e arriscada. Buscou juntar expressão de vanguarda e participação política, expressão existencial e popular. Por isso, foi neoconcreto, compôs cordéis, fez a lírica do exílio, confessou-se.

Nem sempre conseguiu o que buscava. Seus poemas são às vezes discursivos ou demagógicos; o credo stalinista lhe fez tropeçar; seus versos perderam voltagem com a passagem do tempo.

O resultado final, porém, é largamente positivo. Pelo que sua poesia tem de inventividade formal e insubmissão.

Envergar o fardão-ostentação, no caso de Ferreira Gullar, significa espargir sobre si mesmo as cinzas do conformismo, coonestar lato senso com o statu quo, dar uma de Lobão. Tomara que elas não maculem “Poema Sujo”.

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Mario Sergio Conti é colunista da Folha de S.Paulo