Manoel de Barros morreu. Como sempre, o fato causou matérias jornalísticas e a repetição de documentários da TV. O poeta é tipicamente associado à natureza. Seus depoimentos, de certa forma, confirmam essa visão, mas com uma característica especial, ou melhor, duas. Uma: sua poesia é ligada a sua infância (disse ele). Outra: poesia é subversão da linguagem.
A poesia de Manoel de Barros fala da natureza de uma forma muito característica. Não se trata de valorizá-la, embora também faça isso. Trata-se mais de celebrá-la, mas pela observação. No caso dele, isso implica opô-la à civilização. O poeta diz frequentemente que aprende com ela. Assim, não é retrato de paisagem, como característica de um país. A natureza é fonte de sabedoria.
Manoel de Barros não fala da natureza, simplesmente. O que sua poesia faz é inventar uma linguagem que se opõe, estruturalmente, à linguagem da cultura, de uma cultura. A linguagem de sua poesia se torna primitiva, como se fosse anterior à cultura, para mostrar que a natureza (as plantas, as águas, os bichos) antecede o homem. Com ela deveria aprender, ou se aproximar dela, se não igualar-se a ela.
Em 2008, o poeta e sua obra foram tema do documentário Só dez por cento é mentira, com roteiro e direção do cineasta Pedro Cezar Duarte.
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A poesia de Manoel de Barros produz esse efeito por meio de uma estratégia sintática particular (entre outras, talvez). Ele não se vale das conhecidas figuras de linguagem. Ele não metaforiza, por exemplo, para revelar um lado surpreendente das coisas. Ele se vale de um recurso peculiar, que os gerativistas chamaram, antigamente, de “restrições de seleção”.
Tal como eles a apresentaram, a questão dizia respeito ao clássico problema da gramaticalidade. A tese significava que, para que uma sentença da língua faça sentido (ser aceitável, gramatical), não basta seguir regras gramáticas (ordem, concordância, regência etc.). Ela também deve “respeitar” a cultura que essa língua expressa.
O que as restrições de seleção destacavam era a necessidade de haver congruência semântica, que respeitasse uma cultura. Por exemplo, que uma sentença levasse em conta, representasse uma certa classificação dos seres que tornasse seus nomes compatíveis com os verbos.
O exemplo clássico é “Descoloridas ideias verdes dormem furiosamente”. A sequência segue todas as regras da sintaxe, mas desrespeita as relações semânticas. Por exemplo, há uma contradição em uma coisa ser descolorida e verde; ideias não aceitam esses predicados etc.
Outro exemplo famoso considerou o verbo ‘perseguir’, que exige, segundo essa teoria, em uma língua como o inglês ou o português, que seu sujeito seja um agente “+animado”. Assim, seria agramatical uma sentença como *A alface perseguiu a vaca, porque ‘alface’ não designa um indivíduo animado e, portanto, não pode ser sujeito de ‘perseguir’.
Um exemplo de sentença gramatical é O gato perseguiu o rato, porque um gato pode perseguir, enquanto que uma alface não pode. Da mesma forma, o verbo ‘comer’ exige um complemento sólido; por isso, seria estranha uma sentença como *Ele comeu uma cerveja. Uma sentença gramatical com o verbo ‘comer’ exige um objeto como ‘carne’ ou ‘batata’; ‘cerveja’, em contrapartida, pode ser objeto de um verbo como ‘beber’.
Não à toa, muitos consideraram “descoloridas ideias verdes dormem furiosamente” um excelente candidato a verso de um poema, ou seja, a representar a faceta poética da língua (que Chomsky, o criador da gramática gerativa, teria desconhecido, acrescentaram…).
Minha hipótese é que, no que se refere à linguagem, a poesia de Manoel de Barros explora mais as restrições de seleção do que qualquer outro aspecto da língua, embora haja versos como “É no ínfimo que eu vejo a exuberância”, que pode ser lido como uma afirmação quase banal (mas metafórica): a grandeza está nas coisas pequenas. Mas versos como
De noite o silêncio estica os lírios
Pensar que a gente cessa é íngreme
As árvores me começam
Escutei um perfume de sol nas águas
Sou um sujeito cheio de recantos / Os desvãos me constam
são mais comuns na poesia dele do que aqueles em que ocorrem construções inusitadas, mas gramaticalmente perfeitas.
O que caracteriza os versos acima é que são construções que ‘violam’ regras da cultura segundo a qual ‘silêncio’ não pode ser agente de ‘esticar’, nem ‘lírio’ pode ser objeto desse verbo (não se esticam lírios), ‘íngrime’ não é um predicado típico de ‘pensar X’ (‘deprimente’ ou ‘triste’ seriam mais esperados), um ‘perfume’ não se ‘escuta’, ‘desvãos’ não ‘constam’, ‘árvores’ não ‘começam seres humanos’ etc.
Não dizemos, no dia a dia, “a pedra bebeu carne” porque ‘beber’ exige um sujeito animado e ‘carne’ não é um líquido. Nem dizemos que o sol tem perfume ou que árvores nos começam. Só diríamos isso se seguíssemos regras como as da língua de Manoel de Barros. Isto é, se fôssemos poetas cuja obra se constrói com esse tipo de língua.
Desformando o mundo
Essa tese simples sobre a poesia de Manoel de Barros pode ser comprovada em uma obra que contém muitas declarações sobre como deve ser a poesia e como deve ser nossa relação com a natureza.
Em Livro sobre nada, o poeta formula princípios ou objetivos de sua poesia. Destaca a influência da natureza e a relação do poeta (do homem) com a natureza. O poema (será mesmo um poema?) ‘As lições de R. Q.’, por exemplo, diz
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
Podem parecer apenas versos como os outros. Mas eles são seguidos de
É preciso transver o mundo
que soa como um comando ‘poético’ (é preciso) e como uma orientação para a relação do homem com a natureza, que deve ser feita com base na imaginação (em entrevistas, ele diz que se trata de memória; como se ele, de fato, tivesse visto as coisas assim, na infância). E continua:
É preciso desformar o mundo
Tirar da natureza as naturalidades
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Regras desse tipo foram seguidas por ele, já que sua linguagem (a relação que propõe entre sintaxe e semântica) é do tipo que ‘desforma’ o mundo.
Claro, esse mundo é ‘naturalizado’ pela cultura. O que a poesia de Barros propõe é voltar ao antes. O ‘anterior’ se expressa em uma linguagem que não segue as regras impostas a uma língua que já expressa uma cultura.
Por isso, diz ele, “não gosto de palavra acostumada”. Esse me parece ser o resumo de sua doutrina e também a chave de sua prática poética.
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas