“Na semana em que o assunto foram os simpáticos beagles, a Folha anunciou a contratação de um rottweiler. O feroz Reinaldo Azevedo estreou disparando contra os que protestam nas ruas, contra PT/PSDB/PSOL, o Facebook, o ministro Luiz Fux e sobrou ainda para os defensores dos animais.”
Foi assim que a então ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer, saudou minha estreia como colunista do jornal. Meu primeiro texto foi publicado no dia 25 de outubro de 2013; sua coluna é do dia 27. Dada a complexidade da metáfora, suponho que, caso eu tivesse elogiado todos aqueles contra os quais Suzana disse que disparei, teria merecido ao menos o afago reservado aos beagles…
No dia 3 de novembro, Miriam Leitão, em artigo em O Globo, aderiu à metáfora de rabo e quatro patas. Também ela, com suavidade característica, acusava minha violência retórica: “Recentemente, Suzana Singer foi muito feliz ao definir como ‘rottweiler’ um recém-contratado pela Folha de S.Paulo para escrever uma coluna semanal. A ombudsman usou essa expressão forte porque o jornalista em questão escolheu esse estilo. Ele já rosnou para mim várias vezes, depois se cansou, como fazem os que ladram atrás das caravanas.”
Deve ter sido a primeira vez na história da imprensa em que a colunista de um jornal decidiu censurar a contratação de um colunista por… outro jornal. Nota: em sete anos e meio de blog até então, com 40.065 textos e 2.286.143 comentários publicados, eu havia feito apenas 29 menções a Miriam: catorze eram meras referências (“Fulano disse para Miriam Leitão que”); em sete das vezes, eu elogiava o trabalho da jornalista; em oito, contestava opiniões suas – contestação pura e simples, sem ofensa. O arquivo está disponível. Observem que ela me chama de cachorro e, para que não pese nenhuma suspeita de que possa estar sendo violenta ou injusta, adverte que faço por merecer, que pedi a porrada e sei por que estou apanhando. Os agressores estão sempre convictos de que suas vítimas pediram o castigo.
Coube a Alberto Cantalice, vice-presidente do PT e homem encarregado, no partido, de mobilizar as redes sociais, a tarefa de tentar trancar no canil aqueles de quem discorda e jogar a chave fora. Em texto publicado no site da legenda em junho de 2014, fez uma lista de nove profissionais da área de comunicação que seriam os “pit bulls do conservadorismo”, a saber: “Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, Demétrio Magnoli, Guilherme Fiuza, Augusto Nunes, Diogo Mainardi, Lobão, Danilo Gentili e Marcelo Madureira”. Como se nota, a única divergência entre Cantalice e as outras duas é quanto à raça do cachorro. No mais, os três concordam. A entidade Repórteres Sem Fronteiras, que defende a liberdade de expressão mundo afora, emitiu um comunicado de protesto. No Brasil, fez-se um silêncio ensurdecedor. Ou nem tanto: um notório colunista de esquerda protestou, sim! Contra Repórteres Sem Fronteiras! Ou por outra: ele aplaudiu a iniciativa petista.
Progresso e atraso
À contratação deste colunista pela Folha de S.Paulo, seguiu-se uma gritaria danada. No próprio jornal, houve quem desse eco à suposição de que ela marcava uma guinada “à direita” do veículo, numa espécie de ensaio para a então vindoura cobertura das eleições.
Há 126 colunistas na Folha. Dia desses, eu e dois amigos tentamos identificar quantos poderiam ser considerados não exatamente “de direita”, mas, vá lá, identificados com o liberalismo: com algum esforço e alguma licença, chegamos a 10%. Eis a “guinada conservadora”! Imaginem se a Folha decidisse ser o espelho do que encontrou o Datafolha, como se pode ler no site do instituto: “48% dos brasileiros se identificam com valores considerados de direita”. A esquerda representa apenas 30%, e o centro, 22%.
Um jornal é e deve ser livre para contratar quem quiser. Se achar que é o caso de ter 100% de seus colunistas com opiniões de esquerda, que assim seja; se o contrário, idem. O que estou evidenciando é que a acusação de que eu representaria uma guinada conservadora da Folha era só manifestação de intolerância. A mesma demonstrada – e estimulada, com ou sem intenção (é irrelevante) – por Suzana Singer e Miriam Leitão.
Quanto ao senhor Cantalice, dizer o quê? No tempo em que fui editor-adjunto de política ou coordenador da área, na sucursal de Brasília do jornal, o PT nunca reclamou do meu trabalho nem me chamou de cachorro. É que o partido estava na oposição, era uma das principais fontes de informação dos jornalistas para confrontar o governo FHC e sabia que a liberdade de imprensa era fundamental na sua luta para chegar ao poder. O governo tucano não falava em “controle social da mídia” porque não era de sua natureza, e os petistas não tocavam no assunto porque não era de seu interesse. Os “companheiros” só começaram a ver na imprensa “o verdadeiro partido de oposição do Brasil”, como costuma acusar Lula, depois que chegaram ao poder. Sigamos.
Explica-se, assim, para os que eventualmente desconheciam essas historinhas nada edificantes, o título deste livro, que tem um quê de galhofa. Se o limite da generosidade dos que discordam de mim é exilar-me num canil, não lhes falta alguma razão para ver neste jornalista não um beagle, mas um rottweiler ou um pit bull: não tenho um olhar pidão, não espero que passem a mão na minha cabeça, não me esforço para ganhar o afeto de estranhos e, sempre que acho relevante, parto para a briga.
Mas falo, não rosno. Escrevo, não lato. Debato, não intimido. Ocorre que há hoje um esforço deliberado de certos setores organizados – e tais vozes, não por acaso, são muito ativas na própria imprensa – para banir o pensamento daqueles de quem divergem. A margem para a discordância nunca foi tão estreita. Tente debater – e Olavo de Carvalho já chamou a atenção para isso num artigo luminoso chamado “Desejo de matar” – com um defensor da legalização ou da descriminalização do aborto, por exemplo. É praticamente impossível. Se, para ele, a eliminação legal do feto é um ato de liberdade e a proibição é uma repressão inaceitável e incompatível com a democracia, não há como persuadi-lo de que essa opinião é também uma escolha moral.
Dada a impossibilidade, lembra Carvalho, de a gente saber quando começa a vida, uma consideração se torna inescapável: “Se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio”. E o autor avança:
“Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar no cara ou coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.”
Reproduzo o trecho porque creio que estamos diante de um caso exemplar de argumentação não dogmática. Notem que Carvalho não dedica nem uma miserável linha a demonstrar ou a humanidade ou inumanidade do feto. O dilema nasce da dúvida, e é esta que põe em relevo a escolha moral. É irrespondível. Isso explica por que a defesa da legalização do aborto repudia esse terreno e, há muito, desertou do campo da ciência para o dos chamados “direitos sociais”. Afinal, num embate sobre relações de poder, é aceitável – e até desejável – que a liberdade individual seja um dogma, não é mesmo? No Brasil – como esquecer? – os ousados “progressistas” foram ainda mais longe: de forma inédita, tentaram transformar a legalização do aborto num dos “direitos humanos”… Nunca antes na história deste mundo!
Cito o caso do aborto, mas é claro que esse não é o único tema que se pretende tirar do terreno das escolhas morais. A morte do socialismo deixou as esquerdas órfãs de uma base material. Com a mesma convicção com que um marxista do século XX afirmava que a coletivização dos meios de produção era o desdobramento natural da civilização, uma etapa posterior e inexorável do capitalismo e a saída possível para livrar o planeta e a humanidade da barbárie e do colapso, os esquerdistas contemporâneos – exibam eles a carranca do PT e do PSOL ou os xales de Marina Silva – asseguram que sua agenda está acima das divergências porque se trataria de escolher ou o progresso ou o atraso; ou o avanço ou a reação; ou, lá vamos nós, o “Bem” ou o “Mal”.
Outra moeda
Ora, sendo assim, para que debater? Uma coisa, convenham, é divergir sobre escolhas benignas: podemos discordar sobre a eficácia de determinadas medidas, tempo de maturação, alcance, profundidade, oportunidade, riscos colaterais etc. Existe, em suma, uma prática que costumo definir como “confronto afirmativo” de ideias: nenhum dos contendores parte do princípio de que o outro está tentando sabotar as necessárias mudanças ou as medidas para corrigir distorções, injustiças, desigualdades.
Quando, no entanto, num regime democrático, infere-se que adversários representam um passado que não quer passar; que falam apenas em defesa de privilégios inaceitáveis; que representam uma ordem que busca, de modo deliberado, impedir o nascimento do futuro, aí, meus caros, o que se está buscando é obter uma licença para eliminar do embate público o “outro que diverge”, para cassar sua voz, para excluí-lo do mundo dos vivos. Recorrer à metáfora do cachorro – cumpre jamais perder de vista o título deste livro –, obviamente, não é a expressão de uma divergência, mas uma forma de deslegitimação do oponente. O conteúdo de suas objeções estaria abaixo da necessária humanidade para que pudesse ser admitido no círculo das pessoas decentes.
O mais curioso – e, em certa medida, espantoso – é que miro tudo o que escrevi e escrevo em meu blog, hospedado em Veja.com, na própria revista e na Folha ou os comentários que faço no programa Os Pingos nos Is, na rádio Jovem Pan, e nada encontro que esteja fora dos parâmetros estabelecidos pela Constituição e pelas leis do país – e isso pode, efetivamente, fazer de mim um conservador. Raramente me dedico a acusar este ou aquele de ter cometido crimes; como costumo dizer, investigo ideias e sua filiação política, não procedimentos criminosos. Com frequência, prefiro cobrar o efetivo cumprimento da legislação que nos une a propor mudanças que nos empurrem para confrontos. Estou entre aqueles que acreditam que o descumprimento da ordem legal em nome da justiça costuma fabricar injustiças novas e abrir a vereda para o vale-tudo.
Adiante, vocês encontrarão os textos que publiquei na Folha entre 25 de outubro de 2013 e 5 de setembro de 2014. Não os escrevi para que gostassem de mim – há pessoas o suficiente que gostam. Não os escrevi para que desgostassem de mim – há pessoas o suficiente que desgostam. Não os escrevi, acreditem, com o objetivo de convencer quem quer que seja: não sou profeta, doutrinador ou prosélito de uma causa. Eu os escrevi porque traduzem o que penso e porque, creio, ao fazê-lo, amplio o espaço da liberdade.
Os dias andam um tanto brutos. O “fascismo de esquerda”, como o definiu o jornalista americano Jonah Goldberg, raramente foi tão feroz. Ele se organiza em verdadeiras milícias, influentes o bastante para transformar em necessidades universais reivindicações particulares – de caráter, às vezes, escancaradamente corporativo. Resistir a essas ondas não é fácil, mas pode ser muito prazeroso. Denunciar as construções mentais e os raciocínios falaciosos dos intolerantes que pretendem ter o monopólio da tolerância passou a ser um dever.
E o que fazer da ofensa, da grosseria e do grotesco? Repeli-los sempre, mas dando o troco em outra moeda. “Au fond, Le monde est fait pour aboutir à un beau livre”, escreveu Mallarmé. No fundo, o mundo foi feito para acabar num belo livro. É o que pensa este rottweiler amoroso.
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Reinaldo Azevedo é jornalista