A menos que se pretenda insistir no desenvolvimento de uma ciência sem nome, cremos ser necessário fazer uma pausa reflexiva sobre a palavra comunicação enquanto síntese nominal de uma variedade de práticas contemporâneas que se estendem desde as trocas intersubjetivas de palavras até a transmissão tecnologicamente avançada de sinais e mensagens. Materializada em indústrias, esta síntese vem se desdobrando em termos técnicos com enormes conseqüências sociais e acadêmicas, sem que o seu nome próprio realmente configure uma unidade ou, para se atender ao espírito do tempo eletrônico, uma rede cognitiva voltada para a constituição de um saber positivo.
Originariamente, comunicar – “agir em comum” ou “deixar agir o comum” – significa vincular, relacionar, concatenar, organizar ou deixar-se organizar pela dimensão constituinte, intensiva e pré-subjetiva do ordenamento simbólico do mundo. Assim como a biologia descreve vasos comunicantes ou a arquitetura prevê espaços comunicantes, os seres humanos são comunicantes, não porque falem (atributo consequente ao sistema linguístico), mas porque relacionem ou organizem mediações simbólicas – de modo consciente ou inconsciente – em função de um comum a ser partilhado. No âmbito radical da comunicação, essas mediações não se reduzem à lógica sintática ou semântica dos signos, porque são transverbais, oscilantes entre mecanismos inconscientes, palavras, imagens e afecções corporais.
Isto não é social nem teoricamente evidente. Em primeiro lugar, porque a reflexividade – localizada por uma determinada linha de pensamento na própria base da reprodução ideológica dos modernos sistemas sociais – admite que certos termos sejam capazes de produzir a realidade onde se inserem discursivamente. É uma posição que transita dos pragmatistas americanos a sociólogos ingleses e franceses, mas também encontra guarida no pensamento de Walter Benjamin, para quem as ideias são dadas num movimento de percepção original, em que as palavras, nomeando, geram conhecimento: “Num certo sentido, pode-se perguntar se a teoria platônica das “ideias” teria sido possível se o sentido desta palavra não tivesse levado o filósofo, que só sabia a sua língua materna, a divinizar o conceito de palavra, a divinizar as palavras: as “ideias” de Platão, se é possível arriscar este juízo parcial, não são no fundo nada mais que palavras ou conceito de palavras divinizadas”.
Entende-se assim como o termo comunicação – oriundo do latim communicatio/communicare com o sentido principal de “partilha”, “participar de algo” ou “pôr-se em comum” – pôde terminar criando, no século XX, uma realidade própria a partir da sua antiga expansão metonímica do sentido de “coisa comunicada” (reforçada no inglês communication) com o concurso das técnicas de transmissão de informações e da publicidade. O foco na interação, que é uma instância inerente à partilha comunicacional, terminou sobrelevando o significado de transmissão de mensagenns.
Causa e efeito
Os dicionários contemporâneos e principalmente os scholars norte-americanos habituaram-se, assim, desde o começo do século passado a entender comunicação como transmissão de mensagens ou de informações, senão como um horizonte ético e psicológico, subsumido na palavra comunhão. Este entendimento, socialmente sublinhado pelo desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação nos Estados Unidos, reforçou-se na Europa inclusive com o concurso do meio acadêmico que, sob a influência da lingüística e da filosofia da linguagem, tentou encontrar um objeto comum a ambas, imaginando poder fundar uma ciência geral do homem. A ideia da comunicação foi, assim, anexada aos modelos de transmissão de signos.
É verdade que o significado “transmissão” remonta ao século XVI (“comunicar uma notícia”), mas a sua estabilidade contemporânea decorre muito provavelmente da energia da palavra informação, que implica a organização codificada da variedade – portanto, a doação de forma a uma matéria ou a uma relação qualquer – e o fluxo de sinais de um pólo ao outro. Hoje, o termo mídia resume a diversidade dos dispositivos de informação. Embora comunicar não seja realmente o mesmo que informar, a pretensão ideológica do sistema midiático é atingir, por meio da informação, o horizonte humano da troca dialógica supostamente contida na comunicação.
De fato, embora o étimo original (communis+actio=communicatio) nada diga realmente sobre transmissão de informações ou de mensagens, este significado dicionarizado em línguas ocidentais acabou impondo-se sobre o sentido primordial de “ação comum” ou de algo como “ação do comum”. Apropriado pela sociologia, ele serviu de base para o estudo das relações sociais geridas pelas modernas tecnologias da informação e emolduradas no vago quadro teórico do par “comunicação/informação”, que é apenas outro nome para a comunicação moderna, dita também “midiatizada”.
O juízo implícito nessas definições do mesmo pelo mesmo recebe, em lógica, o nome de tautologia. Algo como “comunicação é comunicação”, ou seja, o que se pretende “ciência” da comunicação coincide tautologicamente com a própria realidade vivida. No âmbito lógico – mais precisamente, epistemológico – do pensamento social, tudo isso é fonte de ambigüidade e de problemas para os que aspiram ao esclarecimento do campo teórico atinente à nebulosa entidade denominada “comunicação/informação”. Tanto mais nebulosa quando se considera que a atual complexidade dos sistemas sociais, em contextos praticamente impermeáveis ao estabelecimento de relações lineares de causa e efeito, faz-se acompanhar de incerteza estrutural quanto à previsibilidade dos fatos.
Vínculo originário
Informação não é nada capaz de lançar alguma luz sobre essa indeterminação semântica e teórica. De fato, esta palavra, constante na biologia (neurologia, fisiologia), incorporou-se à atividade jornalística, freqüentou a cibernética, ganhou espaço como um conceito métrico (ou quantitativo) na teoria matemática dos circuitos de transmissão de sinais e terminou sustentando reflexivamente noções de cunho civilizatório como “sociedade da informação” ou “era da informação”.
O problema é que, apesar dos efeitos sócio-discursivos da reflexividade, não se sabe exatamente – isto é, em termos de sistematização cognitiva – do que se está falando quando se diz “informação”. Pode-se mesmo escrever um trabalho de grande fôlego sobre a “era da informação” sem a devida categorização conceitual. Em outras palavras, não se está aqui afirmando que o campo de pesquisas da comunicação seja invertebrado, e sim que é fraca a sua vertebração conceitual.
No âmbito desses efeitos socialmente valorizados, uma abordagem pragmática da questão poderia, entretanto, conduzir ao seguinte raciocínio: Não importa realmente saber o que é comunicação/informação e sim conhecer os usos sociotécnicos que disso se fazem na vida contemporânea.
Este é um entendimento aceitável pelo senso comum dos públicos imersos no que se tem chamado de “cultura das mídias” ou no consumo dos dispositivos técnicos continuamente despejados no mercado pela indústria eletrônica, dos quais se desprende uma aura de irrefreável otimismo, análogo à atmosfera emocional das grandes transformações do capital. Marx já havia observado, aliás, que “as revoluções burguesas, como as do século XVIII, precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso, seus efeitos dramáticos ultrapassam um ao outro, homens e coisas parecem envoltos em resplendores de diamante, o entusiasmo que chega ao êxtase é o estado permanente da sociedade – mas são de breve duração” (18 de Brumário, de Luis Napoleão).
Talvez por isso, até mesmo na esfera do conhecimento acadêmico, sejam admissíveis obras de vulto sobre os usos que fazem o Estado e o Mercado de uma enorme variedade de processos – circulação financeira, consumo, gestão empresarial, divulgação cultural, culturas das mídias, registro documental, convergência digital etc. – com o rótulo geral de comunicação/informação, sem elucidar conceitualmente o objeto descrito ou analisado. Supõe-se que a pura e simples descrição de processos ou práticas bastaria para assegurar a continuidade gerencial de um campo interdisciplinar no âmbito da universidade ou em circuitos técnicos externos sem que se tivesse de recorrer a dispositivos explicativos “fortes”, isto é, à sistematização científica. Em termos políticos ou macrossociais, bastaria avaliar o grau de democratização desses processos para legitimá-los cognitivamente.
Tradicionalmente, entretanto, o próprio empenho pragmatista de valorização da democracia como postulado das modernas sociedades abertas acata o imperativo de redefinição ou de renovação dos mecanismos democráticos. Isto implica não apenas uso, mas educação contínua da cidadania e perspectivas quanto ao que se situa além dos parâmetros econômicos, jurídicos, políticos e sociais estabelecidos por uma determinada formação humana. Este “além” dos limites das formas de poder, que se traduz na prática como criatividade afinada desde a Antiguidade grega com as perspectivas de felicidade do homem, pode receber o nome de ética.
Neste caso, a pergunta sobre o que é não pode ser relegada ao plano dos resquícios conceitualistas da metafísica grega, pois é o necessário ponto de partida para uma orientação existencial frente à hipertrofia de poder da dita comunicação/informação, assim como para uma linha eventual de ação ético-política, no interior do ordenamento democrático. Não é secundária, portanto, a pergunta sobre o que significa realmente comunicação, ainda mais quando se acompanha Wittgenstein na suposição de que toda interrogação de natureza filosófica diz respeito ao significado das palavras. Além disso, dentro de uma visada epistemológica, a interrogação contribui, ao lado do devido esclarecimento ontológico do fenômeno, para que se cogite de um saber positivo, isto é, de uma ciência específica, ainda que não se destine ao confinamento nos parâmetros objetivistas estabelecidos pela episteme dita “normal”.
Algo análogo registra-se na história do pensamento marxiano (nos Grundisse, precisamente) quando este, a propósito do processo de formação dialético do capital, distingue o capital em geral de categorias como valor, trabalho, dinheiro, preços, circulação etc. Ou seja, distingue dos pressupostos a síntese das determinações, ressalvando ser necessário “fixar a forma determinada na qual o capital é posto em um certo ponto”.
É esse “certo ponto” que nos parece sobrevir agora ao campo comunicacional, onde os signos, os discursos, os instrumentos e os dispositivos técnicos são os pressupostos do processo de formação de uma forma nova de socializar, de um novo ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral de organização. Instalada como um mundo de sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica fixa-se no ponto histórico do aqui e agora, não como índice de um novo modo de produção econômico, mas como a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da mercantilização iniciada pelo capitalismo no início da modernidade ocidental. No necessário rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação revela-se como principal forma organizativa.
Acentuamos o “revelar-se” porque comunicação significa, de fato, em sua radicalidade, o fazer organizativo das mediações imprescindíveis ao comum humano, a resolução aproximativa das diferenças pertinentes em formas simbólicas. As coisas, as diferenças aproximam-se como entidades comunicantes porque se encadeiam no vínculo originário (uma marca de limites, equiparável ao sentido) estabelecido pelo símbolo.
Velocidade das ondas
Não se entende símbolo aqui como uma figura secundária de linguagem ou como um epifenômeno lingüístico, mas como o trabalho de relacionar, concatenar ou pôr em comum (syn-ballein) formas separadas, ao modo de um equivalente geral, energeticamente investido como valor e circulante como moeda, falo, pai, monarca, signo, ou seja, como originárias mediações simbólicas que se desdobram em economia, psiquismo, parentesco, política e linguagem.
Linguagem, por exemplo: a palavra ou signo só se materializa no registro social das trocas vitais como uma representação com valor de uso lingüístico porque é simbolicamente constituída a partir de uma condição de possibilidade, um a priori, que não é nenhuma convenção recíproca, mas um vazio gerativo (assim como o número zero), um princípio abstrato de organização – o comum. Este princípio é inerente à condição humana e se torna visível quando o homem, em qualquer latitude cultural e civilizatória, faz aparecer um vazio na totalidade que se apresenta como absoluta, simplesmente pensando.
Esse pensamento revelador não decorre necessariamente de uma individualidade fulgurante, mas sim, não raro, de uma constelação histórica. Hoje, é o próprio acontecimento da realização tecnológica, o seu acabamento histórico como ápice da racionalidade ocidental, pressionado pela energia da informação enquanto eficiente operadora da economia financeira, que revela a natureza organizativa da comunicação. Trata-se, assim, da instância transcendente, oculta ou inconsciente de onde provém o princípio de organização do comum humano, agora reinterpretado pelos sistemas movidos a tecnologia eletrônica.
As forças vivas desse comum podem ser apreendidas como palavras, gestos, sinais ou acolhidas como informação e suscetíveis de avaliações quantitativas (a informação técnica é uma espécie de moeda corrente), mas a comunicação não se define por elas: a actio communis é um a priori, é a dimensão simbólica, condição de possibilidade das trocas vitais, dentre as quais, naturalmente, o sistema de diferenças e substituições dos signos lingüísticos.
É aceitável a metáfora das “placas” para apresentar o conceito: a comunicação seria o conjunto das placas tectônicas sob a superfície do comum. Elas, como suas congêneres geológicas, são essenciais, mas não eternas em constituição ou em alinhamento. Podem deslocar-se por efeito daquilo que, no pensamento marxiano, aparece como Wechselwirkung, ou seja, a ação reflexa, de retorno da superestrutura sobre o que supostamente a determina ou o que, na teoria sistêmica, se descreve como retroação.
Assim, quando um notório crítico cultural americano (George W.S. Trow) descreve a nova paisagem social americana por essa metáfora – “Todo mundo sabe, ou deveria saber, que houve um “deslocamento de placas tectônicas” sob nós (…) partidos políticos ainda têm os mesmos nomes, ainda temos uma CBS, uma NBC, um New York Times; mas não somos mais a mesma nação que no passado teve isso tudo” – está-se referindo ao aspecto particular da política e da mídia, mas principalmente apontando para a movimentação profunda na “crosta” da organização simbólica. Disto decorrem transformações de grande monta nos sistemas educacionais, na produção social de subjetividades e na constituição da esfera pública. Mas para nós, sobretudo, uma transformação geográfica no sentido de que essas “placas”, por efeito da compressão temporal do espaço, formam um novo “continente”, o oitavo, feito de bytes, virtual, acima ou abaixo de todos os outros
Essa movimentação e essa reorganização, acionadas pela velocidade das ondas eletromagnéticas, apontam para o cerne da questão comunicacional. Os fenômenos de trocas discursivas ou de transformações na mídia, habitualmente tratados como o marco regulatório do campo acadêmico, afiguram-se como sintomas importantes, mas não como a objetivação científica do problema da comunicação, porque são apenas resultantes sociotécnicas de uma gênese pouco visível na História.
Este trabalho, que realizamos no âmbito de uma pesquisa apoiada pelo Conselho Nacional de Tecnologia e Pesquisa (CNPq) e de nossas atividades em programas de pós-graduação, pretende contribuir para o debate epistemológico e metodológico na área.
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Muniz Sodré é professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador (CNPq) e escritor, com dezenas de obras publicadas, que versam sobre mídia e comunicação, cultura nacional, técnicas de texto jornalístico e ficção (novelas e contos), alguns dos quais traduzidos na Itália, Espanha, Argentina e Cuba. É professor-visitante e conferencista em várias universidades estrangeiras.