Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Cobra criada

A respeito do pensamento selvagem, disserta o visceral poeta Paulo Leminski, em Poesia: a paixão da linguagem: “O pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão.” Assim também se inscreve a tese vibrante de Mario Geraldo Rocha da Fonseca, intitulada “A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira” (2013). Jornalista formado pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), poeta e doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o pesquisador assume em seu texto uma perspectiva científica que destaca como invento mais acertado da engenhosidade humana a linguagem, isto é, a capacidade simbólica capaz de conferir ao Homem muito mais do que o honroso status de homo sapiens,mas a condição humana demasiadamente humana de “cobra criada”. A primeira chave de leitura que generosamente oferece o pesquisador para compreender o conceito proposto de “Cobra” se dá logo na curiosa epígrafe colhida de Jacques Derrida: “O animal nos olha e estamos nus diante dele. E começar a pensar começa talvez aí.”

Quando Aristóteles chamou o homem de “animal racional”, a Filosofia Ocidental lançou uma lente de aumento sobre o adjetivo “racional” em suas investigações especulativas. Nossa parte substantiva – “animal” – ficou relegada à condição subalterna de instinto, servindo de mote para teses naturalistas que, de maneira redutora e perigosa, tratou a animalidade como sinônimo de bestialidade. Com isso, tomou corpo um preceito estereotipado, segundo o qual o pensamento significaria apenas a domesticação e o controle dos instintos. Precisou Freud, em Mal-estar na civilização (1930), desfazer esse mau entendimento, destacando claramente que o homem abandonou seus instintos básicos e a satisfação integral de suas necessidades, que são seu objetivo primário, para viabilizar a construção da civilização. A tese de Mario Fonseca, em termos conjunturais, presta enorme serviço de utilidade pública ao demonstrar como a cultura ocidental, no afã racionalista, tirou o corpo fora (literal e metaforicamente falando).

A pesquisa também tem o mérito de destacar em plena cena acadêmica a relevante contribuição da “literatura indígena” para as letras brasileiras, deslocando o conceito de “indigenismo literário” para uma seara diferente daquela estabelecida pelos manuais tradicionais de Literatura Brasileira que costumam consagrar o pioneirismo de José de Alencar como escritor voltado aos índios, tornados heróis simbólicos pelo Romantismo, sob viés extremamente folclórico. Esse deslocamento, no campo da perspectiva literária, ganha destaque na tese de Mário Fonseca, a partir de dois conceitos formulados pelo autor e que trabalham em fina sintonia interpretativa: “cobra” e “escrita ofídica”.

Movido pelo espírito dialógico, Mario Fonseca assim sugere sentido ao termo cobra: “Cobra é o termo principal desta pesquisa, constituindo um conceito, um mapa e um personagem, para defender a ideia de que, na literatura brasileira, existe uma linhagem de escritores que praticam o que a tese chama de escrita ofídica. Os três níveis mencionados (conceito, mapa, personagem) são articulados pela maneira de proceder da Cobra, que aqui recebe o nome de desvio”. Por seu turno, à luz da referida tese, a escrita ofídica ganha a seguinte projeção conceitual, considerando também seu importante papel na leitura da tradição literária indigenista brasileira e das suas (re)invenções contemporâneas: “um procedimento bem específico, que diz respeito ao uso da língua com a finalidade de compor obras literárias; e, sendo ofídica, aponta para a possibilidade de aproximações com o modo de proceder ‘literário’ indígena, que se apresenta na maneira como a figura do animal em questão é usada na escrita dos mitos, assim como eles aparecem sistematizados nos ‘livros da floresta’”.

A cobra é o próprio escritor

Mario Fonseca sinaliza positivamente para a legítima existência de uma literatura indígena, contrariando setores da crítica presos a uma linha mais tradicionalista de compreensão do fenômeno literário: “‘Literatura indígena’, expressão que alguns pesquisadores da cultura indígena entendem por um conjunto de mitos escritos que compõe boa parte dos chamados ‘livros da floresta’. Alguns preferem falar em ‘textualidades indígenas’, assim, evitam o termo ‘literatura’, problemático para a compreensão de escritas extraocidentais, como bem demonstrou Antônio Risério, em seu Textos e tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros.” Para Fonseca, interessa saber como os mitos indígenas interferiram na autoria literária nacional, ao invés de saber como os escritores manipularam os mitos em seus escritos. Esse vetor de sentido analítico é fundamental para compreender a direção de arte científica presente na tese de Mário Fonseca. A partir dessa perspectiva, o pesquisador visita as obras de Mário de Andrade, José de Anchieta, José de Alencar, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Milton Hatoum, Ana Miranda, nomeados como macunaímicos, enquanto Manoel de Barros, Roberto Piva, Aldisio Filgueiras e José de Jesus Paes Loureiro recebem a alcunha de escritores ofídicos. Qual a diferença entre os macunaímicos e os ofídicos? O entendimento desta questão passa pelo seguinte alerta feito pelo pesquisador:

“A diferença, como tenho dito, é de perspectiva. O escritor indigenista assim foi chamado porque, de alguma maneira, sonhou em ocupar o lugar do índio, como defende Polar. No caso brasileiro, seja na sua versão colonial ou romântica, ele se sentia investido de alguma qualidade que, somente por meio dela, o índio poderia aparecer na literatura; seja no seu esforço hercúleo para sair do próprio lugar e literalmente se dirigir ao lugar do índio, como se pode entrever em algumas tentativas do indigenismo modernista. A questão, retomando Polar, não é, portanto, que o índio ocupe o lugar do escritor ou este o daquele, mas é o lugar em que o trânsito entre os lugares se torne possível. Assim, o escritor ofídico faz da sua palavra (sem medo de ser redundante) uma Cobra. Eis, portanto, a maneira mais clara para concluir a pergunta que formulei no início desta parte da tese: o que é a Cobra? É o próprio escritor, ou melhor, a sua escrita; logo, é também o índio que nela foi escrito (e lido)”. Repleta de sabedoria amazônica, a tese de Mario Fonseca se comporta como se fosse um autêntico rio do Norte brasileiro: não é na superfície que se encontra o todo visível; são as profundezas que convidam o público para ingressar na aventura do conhecimento enquanto experiência de mergulho no real, respeitando seus “desvios”.

>> Clique aqui para a íntegra de “A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira”, de Mario Geraldo Rocha da Fonseca

******

Marcos Fabrício Lopes da Silvaé professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários