Para um presidente que dizia não ler a imprensa para evitar azia, cartas diárias produzidas no interior do próprio governo funcionavam quase como uma espécie de jornal personalizado. Era assim no primeiro mandato de Lula.
Baseados no noticiário, principalmente da TV e dos dos grandes jornais impressos, o jornalista Bernardo Kucinski, 77, produzia informes que mesclavam análises da conjuntura com críticas à postura do governo e da própria imprensa. Além disso, propunham ações.
Kucinski vai além: “Os informes tinham o objetivo de ajudar o Lula a governar. O presidente lia sempre, mas muitas vezes lia com raiva. Depois, agia em função do que estava escrito.”
O tom imodesto se reflete no subtítulo do livro que ele acaba de lançar: “Cartas a Lula – o jornal particular do presidente e sua influência no governo do Brasil”, que reúne algumas edições que escreveu no período em que foi assessor da Secretaria de Comunicação, subordinado ao ex-ministro Luiz Gushiken, no primeiro mandato de Lula (2003-06).
Professor aposentado da USP e escritor recém convertido à ficção, Kucinski começou a escrever os boletins para Lula, que ficariam conhecidos como “cartas ácidas” (depois rebatizadas de “cartas críticas”), nas caravanas da cidadania, em 1993, a famosa jornada do petista por vários pontos do país na preparação para a disputa presidencial do ano seguinte.
A colaboração prosseguiu nas eleições de 1994 e 1998, e depois gerou um livro com alguns desses textos.
Em 2002, na eleição vitoriosa de Lula, Kucinski diz que o trabalho foi interrompido por ordem do publicitário Duda Mendonça, que não queria o candidato “contaminado”.
“Uma coisa é escrever no ambiente de um partido de oposição, outra é no governo, no ambiente de poder, onde há uma tensão permanente. O poder provoca muita disputa”, disse à Folha.
Tapa na cara
Dividido por assuntos, “Cartas a Lula” registra os temas que dominaram a agenda do início do lulismo, do Bolsa Família às relações internacionais, passando pelas turbulências políticas até a eclosão de escândalos.
Quando em maio de 2004 Lula decidiu expulsar o correspondente do “New York Times”, Larry Rohter, por causa de uma reportagem sobre hábitos alcoólicos do presidente, Kucinski classificou o episódio como o mais danoso à imagem do presidente desde o início do governo.
“No exterior, vai ser vista como medida autoritária que nos remete à imagem de uma republiqueta de bananas”.
No mensalão, que viria no ano seguinte e seria a maior crise dos anos Lula, ele sugere “cortar na carne”, prescrevendo a máxima petista para os delicados momentos de crise, a reforma política.
Outro capítulo que marcou o governo e que está registrado foi a difícil relação com a mídia, tumultuada desde os primeiros dias –”Lula desprezava a imprensa”. Ele também era crítico da política de comunicação da Radiobrás, que segundo o autor fracassou ao não conseguiu criar as “grandes narrativas” do governo.
Como militante do PT, o jornalista também explicita nas cartas a briga pelo poder que ele próprio protagonizou ao se engajar na luta interna contra o paloccismo. Ele dedica um dos capítulos aos temas macroeconômicos e sua cruzada contra a política do então ministro da Fazenda Antonio Palocci.
“A única área que realmente entrava firme era a macroeconomia, quando assumi um papel de militante do PT que também queria disputar as políticas. Posso até dizer que fiz uma campanha contra o paloccismo”, lembra, afirmando que contou com apoio de ministros do núcleo duro da Presidência para levar adiante tal empreitada. Quem, contudo, ele não conta.
Sobre o governo Dilma Rousseff, Kucinski diz que ela começa o segundo mandato cometendo um “erro gravíssimo” ao adotar a plataforma e os quadros do rival, referindo-se à nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda.
“É a desmoralização da democracia e um tapa na cara dos seus eleitores. É a volta do paloccismo, a história já travestida de farsa.”
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Lucas Ferraz, da Folha de S.Paulo