Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Autor em surto

“(…) Por que a dúvida é parte tão integral do que poderíamos denominar a estética do Quixote? Como pode a dúvida ser um valor positivo? O livro dá uma substância ao senso de dúvida provocado pelas descobertas científicas e as ideias filosóficas do período. O Quixote legaliza a dúvida. Dramatiza-a. É a condição moderna.” (Da aula 12 do curso de Roberto González Echavarría em Yale sobre Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Tradução livre e literal.)


Ilustração de José Américo Gobbo

ATENÇÃO: contém spoiler.

Dom Quixote é enlouquecido pela leitura de livros de cavalaria andante. O autor de Matar alguém (Planeta, 2014), Roger Franchini, ficou transtornado pela leitura de jornais. Produziu uma peça de ficção que desborda qualquer padrão de sanidade mental. É certo que a vida não tem compromisso com a verossimilhança. Mas a literatura tem, sim. Esta resenha contém informações que "entregam" parte da história, quer dizer, da realidade – ops! Esqueça, leitor, e siga adiante.

Na imaginação delirante de Franchini – ex-investigador de polícia que se tornou advogado e escritor –, um ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo agora titular da Secretaria de Esportes, Lazer e Juventude, Aristides Vidal, com fortes ligações na Polícia Civil, pretende derrubar seu sucessor, um ex-oficial da Polícia Militar, Escobar Galvão, para voltar ao cargo. Pede a um funcionário de um imaginário Centro de Estatísticas Aplicadas, Ceap, que lhe forneça dados sobre a participação de PMs no tráfico de drogas.

Pede também, a um delegado do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa, DHPP, em gravação de telefonema grampeado por oficiais da PM amigos de Escobar:

“…Todos os PMs bandidos, Sílvio. Me mande tudo o que tiver aí sobre esses cachorros.” – Aristides sempre impositivo.

“Claro, doutor. Acho que temos muitas coisas de policiais militares envolvidos com quadrilhas de roubo a banco. Não são da alçada da Homicídios, mas acho que posso levantar isso tudo…”

“Ótimo. Grampos, fotos, documentos…”

“Conseguimos as imagens de um banco… Um PM aparece de farda explodindo o caixa eletrônico. Correria, fumaça.” – O delegado, empolgado com o pedido de Aristides, descrevia a cena do roubo com detalhes dramatúrgicos.

Crime organizado

O discreto subtítulo do livro trai alguma pretensão documental: Romance policial sobre a guerra entre as polícias e o crime organizado, pelas ruas de São Paulo. Frase ambígua, dá a impressão de que a guerra é polícia x bandidos, mas a preposição “entre” tem aí outro sentido. Frase mais amplamente aceitável adequada ao enredo do romance seria “entre as polícias, com a participação do crime organizado”.

A mais precisa, entretanto, seria “a guerra interna do crime organizado”, quer dizer, de suas diferentes facções: policiais civis, PMs e bandidos fora-da-lei. Mas essa esbarraria no senso comum, que mantém a polícia fora dos circuitos criminosos, ou, mais precisamente, separa polícia de crime organizado. O leitor seria submetido, além dos despautérios inventados pelo autor, a uma espécie de charada metodológica.

Mídia = assessoria

Apesar de ter se utilizado intensamente de fontes noticiosas para inventar sua história, Franchini declarou ao Observatório da Imprensa, em entrevista, que “hoje a mídia faz trabalho de assessoria de imprensa para o Estado. É mais fácil, mais cômodo”. E, acrescente-se, mais barato para as empresas jornalísticas. Também parece ser o que o leitor está inclinado a aceitar.

Franchini tem um penchant por sua antiga corporação. Ele disse, na entrevista: “A polícia [civil] tem uma ética própria, que não concebe as coisas na base de certo e errado. Eles vivem num universo muito próximo ao do crime. Rotineiramente, colocam o pé na ilegalidade para poder trabalhar [sic]. Aceitam dinheiro das vítimas e tomam de bandidos. Quando se apresentam para jornalistas, têm plena consciência dessa circunstância. Os jornalistas, porém, talvez não tenham sensibilidade para essa faceta da realidade e confiam cegamente no que está escrito no inquérito, que consiste num esforço para traduzir o trabalho de desvendamento de um crime num documento que a Justiça aceite”.

Fabulação

“É raro ver um jornalista numa delegacia”, afirmou o ex-investigador. “E quando um deles vai lá, é para falar com o delegado, a pessoa mais preparada para contar a versão do Estado.” Essa declaração torna ainda mais evidente que o escritor tem uma imaginação fecunda. Se a mídia jornalística não conta os casos direito – e não conta, mesmo –, todo o resto entra na conta da fabulação de Franchini. Só pode ter sido inventado.

O enredo do livro – cujo texto merecia revisão mais atenta – é armado a partir do assassinato de um fotógrafo-espião cujo objeto seria o portão principal da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, tropa de choque motorizada da PM paulista), na Avenida Tiradentes. Não parece fazer muito sentido vigiar o portão da Rota. Não seria nesse endereço que seus integrantes cometeriam crimes que lhes são imputados pelo autor (e por investigações policiais e do Ministério Público).

Braço federal

Admita-se-o, no entanto, como recurso ficcional. O que não dá para engolir é que o homem estivesse a serviço da Abin, Agência Brasileira de Inteligência, órgão da Presidência da República. Ainda que o noticiário tenha registrado a elaboração de um relatório especial feito pela agência a respeito de ações do PCC (Primeiro Comando da Capital), dentro do quadro de preparação da Copa do Mundo de 2014. Notícia publicada no Estado de S. Paulo em setembro de 2012: “(…) a situação, ruim há alguns meses, tende a se agravar em razão da resposta do grupo às ações da Rota. O governo de São Paulo nega”.

Daí a imaginar que o agente-fotógrafo tenha sido morto por PMs (do P2, serviço secreto da corporação), como pretende Franchini, vai a mesma distância que afasta a invenção da narração de fatos. Assim como é difícil acreditar que seja prática corrente um delegado fazer pagamentos mensais ao titular “para manter-se intocado em seu posto de plantonista” (pág. 71). Do mesmo modo, é inútil o autor retratar uma espécie de guerra civil permanente entre investigadores e delegados. Quem vai acreditar na lógica contida em desabafo do investigador Rodrigo?

“Raça do caralho. Taí um negócio que não faz falta pro mundo. Delegado de polícia” (pág. 82).

Ainda mais porque o mesmo Rodrigo, protagonista, não tem moral para denunciar ninguém:

“(…) Maurício era generoso com seu parceiro, e pagava sua companhia [em sortidas supostamente investigativas] com quantias respeitáveis. Para Rodrigo, não interessava de onde a grana vinha. Ele precisava do dinheiro para o curso de inglês, a academia, o carro e as namoradas, coisas que seu salário jamais bancaria, se dependesse exclusivamente do Estado como fonte de renda” (pág. 83).

Golpe no Denarc

Outro personagem importante, o investigador Eduardo, trabalha apenas para se distrair:

“Desde que Eduardo havia se tornado milionário, não precisava mais tirar dinheiro de traficantes ou criminosos; em uma única noite, em apenas um trampo, ele havia conseguido levantar sozinho dinheiro suficiente para ficar rico. Puxou o tapete de uma delegacia inteira do Denarc [Narcóticos], enganou, mentiu, fraudou, simulou, invadiu, danificou… tudo dentro da legalidade interna da polícia. O trabalho resultou num êxito imenso, exonerando-o pelo resto da carreira da obrigação de cometer os mesmos atos inglórios dos outros investigadores, atos inconfessáveis nos relatórios de investigação, mas bastante rentáveis” (págs. 96-7).

A delegada Soraria passa seus turno estudando para um concurso:

“(…) ela não se preocupava com o plantão, deixava a burocracia nas mãos da equipe e estudava a noite toda para o concurso da magistratura, enquanto seus tiras… bem, ela não queria saber” (pág. 101).

Esse feio quadro imaginário da Polícia Civil não se compara, porém, com as invenções de Franchini sobre a atuação da Polícia Militar:

“Estopa era o noia do PCC que tinha morrido pela arma do policial militar no mercadinho da Vila Carrão. Seria óbvio concluir, portanto, que comandantes da PM estavam arregimentando membros do crime organizado para executar os homens de sua própria corporação” (págs. 125-6).

Execuções

A má apuração jornalística, ou nenhuma apuração, é criticada implicitamente nesta passagem:

“– Troca de tiros entre traficantes e a polícia deixa cinco mortos na zona norte da cidade.

“‘Troca de tiros…’ Rodrigo não precisava ouvir o resto da notícia para saber que se tratava de mais uma daquelas execuções em massa que a Rota andava fazendo nos últimos dias. Bastava olhar em volta para ter certeza de que estava tudo apodrecendo.

“Uma adolescente de quinze anos, filha de um dos traficantes, estava no local e foi atingida no abdômen. Ela morreu a caminho do hospital. Um dos policiais envolvidos na operação ficou ferido, mas passa bem.

“– Troca de tiros o caralho… – murmurou Rodrigo” (pág. 221).

Polícia mata polícia

Em seus arroubos, Franchini põe a PM saindo totalmente de esquadro:

“Uma informação que Eduardo não esperava ouvir: não era o PCC o responsável por aquele ataque. Era a polícia. O estranho, para Eduardo, é que desta vez os tiros que mataram aquele policial militar não pareciam ter saído de seus companheiros de farda. Era outra polícia, uma que tinha à sua disposição para uso um carro com bloqueio judicial (pág. 247).

[…]

“Eduardo pensou no outro policial militar suspeito de comandar uma chacina, também morto naquelas últimas semanas. Coincidência não era, mesmo com o PCC apagando PMs aos montes. Era na verdade muito conveniente que o PCC fosse tido como responsável por todas aquelas mortes. Inclusive aquelas planejadas pelos assessores de Escobar” (pág. 257).

O roteiro politiza-se

Não é surpresa que em roteiro (a escrita do livro é cinematográfica) tão turbulento, a política faça sua entrada. De braços dados com a imprensa. Os policiais ouvem no Jornal Nacional:

“Documentos inéditos revelam que o órgão responsável pela produção de estatísticas sobre violência no estado alterou dados para ocultar o crescimento da criminalidade em São Paulo” (pág. 151).

A mirabolante atuação da Abin é explicada assim pela algo kafkiana personagem Solange:

“– Não é o PCC que estamos monitorando. Esse é um problema do seu governador, e não do presidente da República. – Solange estampou uma expressão de desafio nos olhos. Esperava que Eduardo entendesse que o interesse do governo federal ia além de mera política de segurança pública regional.

“Não foram necessárias mais palavras. Era ano de eleições gerais e o presidente da República tinha inimigos a serem politicamente anulados na disputa pela reeleição” (pág. 238).

O tema volta vinte páginas depois:

“E que vantagem maior teria [o governo federal], se não a comprovação do cometimento de crime pelos adversários políticos do presidente da República? A tal ‘central’, evidente, eram escutas ilegais feitas pela PM. Possivelmente pela Rota ou, quem sabe, pela P2, tudo comandado pelo secretário de Segurança Pública, que andava muito ocupado se livrando de todos aqueles que pudessem desestabilizar sua gestão: um sargento tagarela, um jornalista disposto a ouvi-lo, o delegado Sílvio… e sabe-se lá o que aquele primeiro soldado no Capão havia feito ou ameaçado fazer” (pág. 258).

Novamente, quarenta páginas adiante:

“– (…) mesmo que o Escobar não se abale com a proposta, tenho certeza que o governador vai ficar interessado.

“– O governador?

“– Claro. Ele quer ser presidente da República este ano, não? Se os ataques continuarem, ele não ganha nem a eleição para prefeito. Só ele pode chutar o Escobar da secretaria” (pág. 298).

O conflito político se torna ainda mais explícito, na trama desvairada de Franchini, quando o governador resolve se livrar do secretário Galvão:

“– Com todo o respeito, governador – as mãos de Escobar fechadas sobre a mesa, serenas –, mas o senhor sabe o carinho com que os meninos da Rota estão tratando daquele inquérito em que o seu irmão se envolveu.

“Antes que o secretario pudesse terminar de falar, o governador levantou-se, aborrecido. Uns meses antes, seu irmão fora indiciado por crime de fraude em algumas licitações de merendas das escolas estaduais. O dinheiro arrecadado, segundo apurou-se, fora parar em uma conta do partido do governador, para o financiamento de sua campanha a presidente da República.

[…]

“– O ministério público está comigo na criação da central [clandestina de escuta]. Tudo o que ouvimos, os promotores controlam.

“– Para interceptar as conversas de bandidos, Escobar – interrompeu o governador. A argumentação havia deixado seu rosto vermelho, e uma veia larga pulsava em seu pescoço. – Eu mando no MP, caralho! A mulher do procurador-geral de Justiça trabalha no meu gabinete! Posso enfiar esse inquérito no seu cu quando quiser.

“– Tudo foi autorizado pelo Judiciário.

“– Para monitorar o crime organizado…

“– É isso que estamos fazendo.

“– Não foi para espiar gente da polícia, jornalistas, o secretário de Esportes!

“– O senhor…

“– Vocês quase mataram um secretario de Estado, filho da puta! Bateram na esposa dele. Um homem que não tem nada a ver com isso, porra! Chega, Escobar. Uma semana [para pedir demissão]. E não quero violência com sua saída, ouviu?” (págs. 238-9).

O paroxismo da insanidade ocorre no romance quando o autor atribui ao PCC a exigência de renúncia do secretário de Segurança. Condição para cessar assassinatos de policiais, concomitantes com tentativas de rebelião e incêndio de ônibus. Escreve Franchini:

“Enquanto isso não acontecesse, prevaleceria o salve geral já enviado às bases do Primeiro Comando da Capital: todo policial militar que fosse encontrado deveria ser morto, sem piedade” (pág. 284).

“Banda podre”

A imprensa também é convocada para a trama de Franchini quando o secretário Escobar vai se encontrar com uma jornalista no shopping Pátio Higienópolis. Na vida real, tal como narrada na imprensa, o encontro, em março de 2011, foi com o jornalista da Folha de S.Paulo Mario Cesar Carvalho (ver “Guerra na polícia de São Paulo atinge a Folha“; notar que o discurso oficial, sobre “banda podre” da polícia, é endossado pelo repórter da Folha e por seu entrevistador, eu mesmo). Nessa passagem, Franchini não resiste à tentação e coloca a si próprio na cena, acrescentando um toque literário às lunáticas fabricações.

Oito meses depois, o secretário Antonio Ferreira Pinto foi demitido. Seu substituto foi Fernando Grella, ainda no cargo; é um procurador, como no livro Matar alguém, escrito posteriormente. Pincelada de verossimilhança.

Confusão de gêneros

O leitor está diante de três gêneros narrativos mesclados: inquéritos policiais, há séculos uma fonte preciosa de inspiração para ficcionistas; reportagens; e a ficção propriamente dita. Os dois primeiros gêneros têm no Brasil fundamentos débeis, como se sabe.

Inquéritos são muitas vezes conduzidos com o objetivo de praticar extorsão e não de buscar a verdade das ocorrências. Reportagens são calcadas no discurso da polícia e das autoridades que exercem a função política de comandá-las. Resta a ficção. Cujos referenciais, no caso, são reportagens, por sua vez dependentes em larga medida de um discurso policial feito para ocultar, mais do que para revelar.

O leitor de Matar alguém tem todo o direito de colidir com o senso comum e tomar a ficção por relato abalizado da realidade. É problema dele. Só precisa acreditar no inacreditável narrado por Franchini.