Sentado em uma cadeira de praia, o chapéu arriado sobre os olhos, pernas cruzadas e pés descalços, o nonagenário que aparece na foto em nada sugere tratar-se de um dos mais expressivos líderes políticos brasileiros do século 20. O combatente da histórica marcha, que liderou comícios e insurreições, para uns cavaleiro da esperança, para outros agente de Moscou, apenas descansa como homem comum, à beira-mar – fora longa e excruciante a batalha por uma revolução que não houve. Morreria pouco depois desse instantâneo no Ceará, em março de 1990.
Quase 25 anos depois de seu desaparecimento, Daniel Aarão Reis, historiador com vasta obra dedicada à trajetória da esquerda no Brasil, propôs-se a construir um novo retrato do dirigente comunista. Decerto não foi um homem comum. Luís Carlos Prestes – Um Revolucionário Entre Dois Mundos é a biografia alentada que lança pela Companhia das Letras, “sem demonização e sem hagiografia, como era típico do que havia sido publicado a seu respeito”, esclarece o autor. Quis produzir um registro “equilibrado”, como diz.
De fato equilibrado, avaliando personagem e fatos em sua complexidade, o relato de Aarão Reis perfaz um século da história política brasileira a partir de Prestes. Era para ser uma biografia sintética, com não mais do que 200 páginas, para a coleção “Perfis Biográficos” da editora. Após cinco anos e meio de pesquisas em arquivos do Brasil, Rússia e Estados Unidos, entrevistas e consulta à bibliografia, a biografia chega às livrarias com mais de 500. O projeto cresceu – para sorte dos leitores. A derradeira foto na praia é uma das dezenas que integram o volume.
Não só as novas gerações, também os afeitos aos episódios aí narrados vão encontrar novidades, como se deu com o próprio autor, enquanto conduzia o projeto. “Ai do pesquisador que não se deixa surpreender por suas fontes, não fará boa obra de história.” Entre as muitas, destaca “as contradições enfrentadas pela Coluna, sobre a qual predominava uma imagem muito épica”; a “evolução ziguezagueante” do Partido Comunista nos anos 1930; o “amadorismo dos revolucionários” na aventura de 1935; as “batalhas surdas” entre Prestes e os homens do aparelho partidário; as “posições esquerdistas do Velho nos anos 1980, isolando-se na sociedade brasileira quase que deliberadamente”; e, “finalmente, mas não menos importante, as relações pessoais e familiares, tratadas com muito cuidado no livro, sem espírito sensacionalista, que, no entanto, revelam uma história folhetinesca, a merecer uma novela”.
Prestes mostrava-se “sempre muito reservado e silente sobre aspectos, preferências e desgostos pessoais”. Com a correspondência pessoal dos anos de cadeia, publicadas por Anita e Ligia Prestes (irmã dele), os depoimentos de companheiros e de parentes, Aarão Reis conta que encontrou “um homem de sentimentos”, cercado de figuras femininas fortes, decisivas. Das dificuldades com as fontes, lamenta não ter obtido a contribuição de Anita Prestes, autora de livros sobre o pai e responsável pelo instituto dedicado a ele. Da personalidade do biografado, um dos aspectos que questiona é certo exagero em se atribuir a sua rigidez à formação militar. “A meu ver, não procede essa avaliação. Ressalvada uma certa empolgação juvenil, Prestes desgostou-se muito cedo do Exército, de sua burocracia, de sua incapacidade, de sua monotonia. A rigidez do meu personagem tem outras duas origens: a formação familiar e a formação comunista dos anos 1920 e 1930.”
Quase no ostracismo em seu fim de vida, o líder comunista era lembrado por falhas e equívocos. Para entender seu peso político, há de reconstituir seus passos e seu tempo. O drama da vida de Prestes, e de todos os revolucionários de sua época, como explica Aarão Reis, é que lutaram por uma revolução social que não teve lugar. “É duro ser revolucionário numa sociedade que não vive um processo revolucionário. A revolução é um processo social, não depende, ou depende muito pouco, das ‘orientações’ das soi-disant ‘vanguardas’. Em não havendo processos revolucionários objetivos, é muito fácil fazer o inventário dos ‘erros’ e das ‘insuficiências’, como se nas revoluções vitoriosas não houvesse ‘erros’ ou ‘insuficiências’.”
Contradições sociais
A despeito dos equívocos e das derrotas, o historiador ressalta quanto Prestes gozou de grande prestígio. Quando surge em âmbito nacional, na época da Coluna, em fins dos anos 1920. Ao ser libertado após uma longa prisão, em 1945, e é eleito senador pelo Rio. Depois, em fins dos anos 1950 e na conjuntura crítica que precedeu o golpe de 1964.
“Certo, da derrota catastrófica de 1964 ele e o PCB não se recuperaram, mas isso aconteceu menos por uma consequência inevitável da derrota e mais pelo fato de que ele e o PCB não souberam ‘ler’ o processo histórico que passou a existir no Brasil depois da instauração da ditadura. Depois, nos anos 1980, Prestes resolveu assumir uma perspectiva claramente revolucionária, em contraste com a dinâmica real da sociedade. Isolou-se. Mas conservou, ainda assim, o respeito e a consideração das gentes. Pelo seu passado, pela sua integridade.”
Aarão Reis trata do ostracismo de Prestes e, depois, de uma ainda que tímida recuperação de sua imagem. Por que a esquerda lidou tão mal com sua figura após a democratização? Quanto ao seu legado, hoje, de que modo podemos vê-lo na história da esquerda brasileira, 25 anos após sua morte? O historiador esclarece: “Prestes, tendo sido o grande líder do PCB por tantos anos, concentrou nele as críticas ao partido num fenômeno conhecido de ‘personalização da política’.”
As duas que destaca são: numa ordem mais geral, as críticas à estrutura fechada, vertical, hierárquica, antidemocrática do PCB. “Na época stalinista tais características eram muito fortes, típicas. Contudo, mesmo depois, permaneciam como heranças, incontornáveis.” Numa ordem mais específica, a derrota de 1964. “Prestes e Jango, líderes do PCB e do PTB, viraram os bodes expiatórios da derrota. O fato de não terem conseguido lidar com ela aprofundou seu desgaste e isolamento, uma espécie de marca, responsáveis pela derrota.”
O que prevalece, segundo Aarão Reis, é “uma simplificação rasa de complexos fenômenos históricos, embora haja aí um grão de verdade”. “Infelizmente, porém, é assim que a maioria das pessoas se move, quando pensam em política. Ressalte-se, porém, que, mesmo isolado politica e socialmente, nos anos 1980, Prestes conservou certo prestígio e respeito por parte das forças de esquerda. Vinte e cinco anos depois, parece pertencer a um passado que passou. Não podemos esquecer, contudo, as reviravoltas da história.”
Com eventual radicalização das contradições sociais e políticas, Aarão Reis crê que “o personagem, as questões que tentou resolver, as lutas que travou, as esperanças que cultivou poderiam novamente se reatualizar”.
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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico