Nas salas de cinema dos anos 1950 da capital cubana, ocorre o que parece ser um milagre. Mal estreiam nos EUA, os blockbusters do momento já são exibidos em Havana, em versões cheias de pixels e com péssima qualidade. A explicação, porém, é simples. São cópias piratas que surgem sem controle, consequência do embargo imposto pelos EUA à ilha desde os anos 1960.
Além das salas de exibição, a pirataria dá as caras também nas ruas, onde é possível comprar em camelôs CDs e DVDs com os últimos lançamentos de música, minisséries e filmes norte-americanos. “Não há nada que estreie nos EUA que não se possa comprar aqui logo em seguida. Se Hollywood quiser entrar no mercado cubano de forma legal, vai ter de enfrentar a pirataria já generalizada”, conta o escritor e colunista da Folha Leonardo Padura.
Para artistas ouvidos pela reportagem, a aproximação política e diplomática de Cuba com os Estados Unidos terá um forte impacto na indústria audiovisual e na literatura locais.
Enquanto os laços diplomáticos estiveram rompidos, o governo cubano não puniu a pirataria. Mais do que isso, estimulou-a, exibindo cópias ilegais na própria TV pública.
Já os EUA fizeram vista grossa à contravenção porque acreditavam que o consumo de produtos hollywoodianos poderia ser uma boa estratégia para combater a propaganda anti-imperialista que os irmãos Castro lançam sobre a população.
Depois da reaproximação, anunciada pelo presidente Barack Obama (EUA) e o ditador Raúl Castro (Cuba) há duas semanas, a possibilidade de as relações comerciais serem normalizadas anima os produtores dos EUA.
“Cuba pode ser um grande mercado, como a República Dominicana e Porto Rico. Mas teremos de investir em salas multiplex e impedir que os velhos cinemas continuem exibindo pirataria”, diz Craig Dehmel, responsável pela distribuição internacional dos produtos da Fox.
Por outro lado, trabalhadores da indústria local, formados na tradicional escola do cinema cubano, esperam retorno financeiro do aumento do uso da ilha como cenário para montagens estrangeiras. “Aqui há bons profissionais treinados, mas falta tecnologia”, diz o francês Gael Nouaille, um dos produtores dos longas Retorno a Ítaca e 7 Dias em Havana.
Literatura
Autor de Trilogia Suja de Havana (lançado aqui pela Alfaguara), Pedro Juan Gutiérrez diz que um dos principais efeitos positivos da decisão é ampliar o intercâmbio intelectual entre os dois países. “Tive convites para ir às universidades de Columbia e do Colorado, mas nunca me deram o visto. Espero que isso mude”, diz, em entrevista à Folha.
“Estou indo dar aulas na universidade de Princeton. Isso seria mais difícil antes. Agora, escritores e intelectuais cubanos exilados também poderão voltar para realizar projetos acadêmicos aqui. E isso é excelente”, diz, por telefone, Wendy Guerra, autora de Posar Nua em Havana (lançado aqui pela Benvirá).
Para Leonardo Padura, “se alguém pergunta a um cubano quem são os escritores mais importantes daqui, ele dirá José Martí (1853-1895) e Ernest Hemingway (1899-1961). O primeiro viveu nos EUA, o segundo é um americano de quem os cubanos se apropriaram, por ter morado aqui. As duas culturas sempre se influenciaram muito”.
E complementa: “Eu mesmo sou fruto da leitura de autores americanos, como Dashiell Hammet e John Updike. Por outro lado, nos EUA se consome muita música cubana. Os enfrentamentos dos dois países sempre foram de ordem política. Na cultura nunca deixou de haver diálogo.”
Para o autor de O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo), a literatura contemporânea de Cuba já vinha anunciando mudanças sociais e políticas. “É um gênero que tem seu ritmo próprio, mas que soube retratar o que agora vemos na política. Como nosso jornalismo é fraco e muito controlado pelo governo, a literatura tem sido responsável pela crônica social.”
Nos últimos dez anos, autores como Padura, Guerra e Gutiérrez têm demonstrado em seus romances, de forma crítica, a mudança do comportamento dos cubanos com relação à Revolução (1959). Foram censurados, muitos de seus títulos ainda são proibidos e circulam de forma clandestina, mas puderam permanecer vivendo na ilha.
É um cenário distinto, uma vez que, no passado, escritores que se opuseram ao governo, como Heberto Padilla (1932-2000), Reinaldo Arenas (1943-1990) e Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), foram forçados ao exílio.
Apesar de entusiasmados com uma provável abertura cultural, os autores defendem que se discutam políticas de protecionismo da produção local e de limitação à entrada de produtos dos EUA.
“Temos uma tradição de absorver várias manifestações. Nossa política de consumo é multicultural. Em Havana sempre houve espaço para mostras de cinema japonês, europeu, adoramos novelas brasileiras e rock argentino. Não vai ser positivo que a cultura norte-americana se imponha simplesmente. Teremos de levar adiante um debate sobre a manutenção desse consumo variado e a defesa da produção local”, diz Padura.
Gutiérrez concorda: “As autoridades cubanas devem ter cuidado para que a indústria de entretenimento dos EUA não engula o circuito local. Todos os países adotam políticas nesse sentido, temos de fazer o mesmo.”
Internet e mídia
Outro ponto citado pelos entrevistados é o acesso à internet. Apesar de investimentos recentes do governo em fibra ótica, Cuba ainda ocupa um dos últimos lugares no ranking de países conectados.
“Melhorar isso significará incrementar nosso jornalismo, que é muito falho e oficialesco, trazendo informação e estimulando troca de fontes e experiência”, diz Padura. “Mais conectividade nos tirará do isolamento e ajudará a retroalimentação cultural com os EUA e outros países”, completa Guerra.
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Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo