Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O conservadorismo crítico de Otto Karpfen

Quando chegou ao Brasil, em 1939, o crítico literário e jornalista austríaco Otto Maria Carpeaux já era autor de três livros e uma série de artigos, que ele próprio se preocupou em excluir de sua bibliografia. Uma dessas obras é Caminhos para Roma – Aventura, queda e triunfo dos espíritos, que agora ganha edição brasileira (tradução de Bruno Mori, Vide Editorial, R$ 35,00).

Publicado em 1934, em Viena, o livro expõe uma face ainda pouco conhecida de Carpeaux: sua ligação explícita com o catolicismo, que exerceu forte influência nos rumos da política austríaca na conturbada década de 1930. Outro dado importante sobre esta obra, que precisa ser levado em conta pelo leitor brasileiro, é que este foi um dos primeiros textos publicados por Carpeaux após sua decisão de se retirar da religião judaica, ocorrida em abril de 1933.

Para marcar publicamente sua conversão ao catolicismo austríaco, Otto acrescenta o “Maria” ao seu nome de família “Karpfen”, compondo assim um dos vários pseudônimos que adotou ao longo da vida. Nesse sentido, Caminhos para Roma é muito mais uma obra escrita por Otto Maria Karpfen do que por Otto Maria Carpeaux, nome que adotou no Brasil a partir do início da década de 1940, e pelo qual passou à posteridade como um dos nossos mais brilhantes críticos literários.

Com isso, quero dizer que Carpeaux foi um twice born: um sujeito que, derrotado politicamente em 1938, com a anexação da Áustria por Hitler, partiu para o exílio onde precisou se reinventar para sobreviver. A leitura de Caminhos para Roma não pode prescindir desses dados contextuais, necessários para se entender o lugar ocupado por esse livro no conjunto da obra de Carpeaux.

Espírito vienense

Obra de difícil classificação, pois transitando pela filosofia, teologia, história das ideias e até por discussões científicas, o livro recorre a diferentes correntes de pensamento – da religião à política, da ciência à moral – para demonstrar a tese de que todos os caminhos, filosóficos, estéticos e humanísticos, conduzem para um mesmo ideal: a unidade do Ocidente cristão sob a égide de Roma. No decorrer dos sete capítulos que compõem o livro, Carpeaux empenha-se em demonstrar que a religião de Roma é o ponto para onde convergem todos os movimentos do espírito, da física à estética, da ética à política.

Outro aspecto relevante desta obra está na relação entre experiência religiosa e expressão literária. Se nos artigos que escreveu no Brasil, o fenômeno religioso é apenas uma presença latente na mente de alguém cuja religiosidade sofrera profundas transformações, neste livro de estreia a religião é uma totalidade, uma cosmovisão em que o dogma religioso é o eixo em torno do qual giram todas as demais instâncias da vida e do pensamento.

Um dos capítulos que mais chama atenção em Caminhos para Roma é “O Sol de Satã” (pág.103-117). A opção do tradutor por verter o sentido literal do original, “Die Sonne Satans”, faz desaparecer a metáfora da luz do demônio que seduz e corrompe, essencial para se compreender a relação entre religião e arte em Carpeaux.

A edição ganharia em qualidade se tivesse notas lexicais e explicativas do tradutor, necessárias numa obra tão específica como essa, permeada de alusões e referências locais, como o forte vínculo de seu autor com o catolicismo austríaco, expresso, por exemplo, na chancela que o livro recebeu da Cúria de Viena antes de ser publicado, ou no elogio de Carpeaux ao monsenhor Jakob Fried, importante autoridade da Igreja de Viena. Em outras palavras, a tradução ressente-se de certa familiaridade, seja a esse espírito local, seja com a dicção vienense da língua alemã de Carpeaux. Mas a ausência desses procedimentos não retira o mérito desta que é a primeira tradução integral do livro para o português.

O espírito católico

Neste capítulo, aliás, Carpeaux faz um diagnóstico da situação da arte nos séculos 19 e 20 e elenca alguns dos critérios que orientam sua concepção estética. São trechos contundentes e datados, difíceis de aceitar hoje. Após a leitura, compreendemos os motivos que fizeram seu autor considerar esse livro superado.

Um exemplo disso está no diagnóstico severo de Carpeaux a respeito do processo de secularização sofrido pela arte contemporânea, feito a partir de uma visão teologizante da arte e da história. Aqui poderíamos assinalar senão o parentesco, pelo menos a proximidade com o fundamento divino de toda história que se encontra em Friedrich Schlegel e cujos ecos encontramos também em Benjamin.

Mas para Carpeaux a arte é vista como celebração, culto. “A verdadeira arte é adoração a Deus, é religião”, escreve.A estreita relação entre arte, religião e história é a chave para se compreenderem os argumentos contidos emCaminhos para Roma. Carpeaux descreve o momento em que a arte troca a inspiração divina por temas seculares, o que, para ele, será uma perda irreparável.

Sempre em tom apologético, o autor ressalta a fidelidade da arte, em todos os tempos, à Igreja de Roma. De Dante a Celano, de Palestrina a Bellini, Carpeaux invoca inúmeros artistas que fundamentaram a temática de suas criações na religião. Mas não é só isso: além de glorificar o barroco e a contrarreforma, Carpeaux destaca a presença viva do espírito católico em diversas criações artísticas. “Vive o espírito católico na poesia espanhola, que de Lope a Calderón consagrou-se a glorificar com peculiar profundidade de sentimentos o santíssimo sacramento do altar. Vive o espírito cristão e católico na grande poesia clássica dos franceses, cujos mestres da língua, de Pascal e Bossuet até Racine e Fénelon, foram todos bons cristãos”, escreve.

Visão conservadora

Carpeaux recorre ao contexto da história da arte para demonstrar o quanto foi íntima a relação entre criação artística e catolicismo e o quanto a primeira sempre se beneficiou desta proximidade. Mas um novo capítulo da história da arte tem início com este processo de secularização, que faz os temas cristãos serem deixados de lado. Escreve o crítico: “Uma grande morte inicia-se. Uma obra de arte católica, o Réquiem de Mozart, é que acompanha essa arte e essa sociedade ao sepulcro.”

O conjunto de mudanças no âmbito da arte descrito por Carpeaux coincide com aquilo que Ernst Cassirer denominaria, em A filosofia do iluminismo, obra também dos anos 1930, de uma nova consciência religiosa. A liberdade individual passa a reger a própria concepção de religião. Ao homem recém-saído de sua condição de menoridade não cabia mais submeter-se a forças superiores. “O homem não deve mais ser dominado pela religião como por uma força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio na sua liberdade interior”, argumenta Cassirer.

Mas Carpeaux segue direção oposta, ou seja, de crítica ao racionalismo da Aufklärung e de defesa do barroco: “A pompa sagrada do barroco converte-se nos adornos luxuriosos de uma sociedade decadente”, escreve.

Ao descrever o momento em que a arte deixa de ser fruto do mecenato para guiar-se pelos condicionamentos do incipiente mercado de bens culturais e do nascente público consumidor, Carpeaux lamenta o rebaixamento do conteúdo artístico e as adaptações de tempo, espaço e de estilo em função do novo público a que a arte agora se dirige.

Impregnado de uma visão conservadora e, por vezes, até ingênua, Carpeaux lamenta o abandono dos temas religiosos e sua substituição pelos vínculos com o mercado. A epopeia termina, a música sacra morre e a ópera se transforma em drama, pois já não se tem mais tempo para obras longas e reflexivas. “A epopeia chega ao fim; é comprida demais e tediosa demais para um homem de negócios que tem muito pouco tempo”, escreve.

Contra a luz de Satã

O inconformismo de Carpeaux com os rumos tomados pela modernidade chega a tal ponto que ele não hesita em afirmar que “a arte se prostituiu”. Prostituiu-se, primeiro, ao abandonar a religião enquanto fonte de inspiração e, em segundo lugar, ao se submeter às regras do mercado. Assim como rejeita qualquer ampliação da ideia de religião, seja no sentido de um deísmo ou de uma religião natural, Carpeaux não aceita igualmente qualquer dilatação do horizonte da arte. Sua concepção de mundo está centrada nos conceitos de dogma, tradição e fé.

Nesse sentido, a reconstrução histórica do período feita por Dolf Oehler em O velho mundo desce aos infernos pode ser útil para contextualizar esta obra de Carpeaux, principalmente quanto ao teor de crítica à modernidade. Oehler argumenta que o uso de categorias teológico-morais para interpretar o movimento histórico e, por que não, artístico, era um dos traços do pensamento do século 19. “Para os conservadores, como para os defensores do progresso e mesmo da revolução, a história e a atualidade apresentam-se como uma luta entre o bem e o mal, entre os poderes da luz e o das trevas”, escreve Oehler.

É possível, assim, identificar nessa obra europeia de Carpeaux uma atitude de reação à nascente indústria de bens simbólicos, principalmente pelos efeitos desses novos valores de classe na condição humana, no esgarçamento das relações entre fé e moral, entre arte e fé. Em suma, esta é uma obra pautada pela crítica à modernidade a partir de um ponto de vista religioso.

Não será exagero inferir que Caminhos para Roma é uma obra cujo contexto de produção remete a esse ambiente, ou melhor, a esse combate típico do século 19, contra o mal e contra a luz de Satã. Esta era a concepção religiosa do então Otto Maria Karpfen e muito pouco disso, ou quase nada, está presente nos brilhantes e lúcidos artigos que iria escrever e publicar no Brasil a partir da década de 1940. Afinal, a própria fé católica de Carpeaux passou por um processo de secularização cuja causa parece estar nos dramáticos acontecimentos vividos em Viena e no posterior exílio forçado no Brasil. Decididamente, Karpfen não é Carpeaux.

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Mauro Souza Venturaé jornalista, doutor em Teoria Literária pela USP, professor da Unesp e autor de De Karpfen a Carpeaux (Ed. Topbooks)