Quem quiser urubuzar a ideia, tachando-a de quixotesca, amalucada ou ingênua, fique à vontade. Eu mesmo, às vezes, penso que é. Esta: tornar pública a biblioteca dO TREM, a funcionar em uma casa simples, mas bem-cuidada, central, pintadinha e com jardim. “Se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada faltará”, disse Marco Túlio Cícero. O orador romano, creio, não se importaria se acrescentarmos uns pés de frutas e até uma horta. O sonho é grande, não é fácil, falta a casa, mas para que economizar nas oníricas alucinações de travesseiro?
Incomoda-me muito essa longa carência de investimentos em leitura na cidade onde moro, trabalho e que amo. Em 2012, ajudamos a defenestrar um governo inimigo dos livros, pusemos outro no lugar com votação esplêndida, esperançosos de que o novo trataria a leitura como desenvolvimento, mas até agora – e já se está no terceiro ano do mandato – nada de grandemente importante foi feito pelos livros. Bateu uma senhora frustração.
Esmorecer e ficar pelas desgramadas praças a amaldiçoar o governo? Não resolve. Decidimos então enfrentar este desafio: abrir, nós mesmos, uma biblioteca que proporcione conhecimento a quem o queira, o que, ressalte-se, não desobriga o governo municipal da tarefa de investir fortemente em livros e leitura. A ideia aqui apresentada é só uma chispa na fogueirona que é o necessário projeto coletivo – governo, população, todos – de construir uma Itabira literária.
O que chamo de Itabira literária já foi explicado à farta nestas páginas, mas não custa um repeteco: é a cidade enfiar a cara nos livros, tratá-los como progresso, como adversário dos nossos muitos atrasos. É ter uma feira literária de importância nacional, criar a Jardineira da Leitura para percorrer bairros e zona rural, fazer um concurso literário bem-sucedido, se relacionar com poetas, cronistas, romancistas, críticos e professores… Tendo como patrono um dos maiores escritores do Brasil em todos os tempos.
Informação inédita: Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira. Sim, nasceu aqui, juro, podem pesquisar no Google, senhores políticos no poder. A vocação é óbvia demais: Drummond = livros = leitura = conhecimento = educação, logo: Itabira, cidade literária. Ignorá-la é perder um mundo de riquezas, chega a ser um delito. Delito que macula a biografia de quem esteve no poder e perdeu a oportunidade de fazer o que devia.
A biblioteca que abriremos ao público, se tivermos sucesso nessa empreitada, será um trabalho a mais do jornal em favor do engrandecimento cultural da população. O projeto não parte do zero, pois já temos milhares, milhares e milhares de livros de literatura brasileira e estrangeira, biografias, história, filosofia, fotografias, artes, botânica e dicionários, comprados em sebos de todo o Brasil e também presenteados à redação por centenas de escritores. O TREM recebe livros quase toda semana, espontaneamente.
Eis alguns autores que, mui cortesmente, já presentearam a redação: Affonso Romano de Sant’Anna, Lygia Fagundes Teles, Humberto Werneck, Fernando Jorge, Carlos Trigueiro, Manuel Graña Etcheverry, Domingo Cruz, Reinaldo Figueiredo, Iacyr Anderson Freitas, Anderson Braga Horta, Nicolas Behr, Cunha de Leiradella, Jean Kadar Prévoust, Edmílson Caminha, Rogério Newton, Luís Pimentel, José Paulo Cavalcanti Filho, Teócrito Abritta, Nelson Bravo, Fernando Fábio Fiorese, Hernâni Donato e José Alcino Bicalho.
Mais alguns: José Maria Rabêlo, Caio Porfírio Carneiro, Márcio Sampaio, Nicodemos Sena, Yara Tupynambá, Laé de Souza, Roberto Gomes, Silas Corrêa Leite, Léa Madureira Lima, Ronaldo Werneck, Rogério Alvarenga, Glauco Mattoso, Maria Luiza Penna Moreira, Guido Bilharinho, Sylvio Back, Abdias Moura, Cezar Tridapalli, Mabe Bethônico, Ulisses Tavares, Marco Simas, Evaldo Balbino, Mouzar Benedito, Gabriel Kwak, Nilson Monteiro e muitos, muitos outros, aos quais agradeço e peço a gentileza de se sentirem representados nos nomes supramencionados.
Dezenas de editoras, instituições e empresas também já regalaram a biblioteca do jornal. Na impossibilidade de citá-las todas, mencionarei as primeiras dez que me vierem à cabeça: Academia Brasileira de Letras, Instituto Moreira Salles, LetraSelvagem, Record, Universidade Federal de Minas Gerais, Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Arquipélago Editorial, editora Globo, Associação Brasileira de Imprensa e companhia Vale.
Sem essa de torre de marfim
É lícito manter nossa biblioteca aprisionada na redação do jornal? Até que é, mas por que não dividir tamanha riqueza cultural com a população? O acesso já é franqueado a pesquisadores que nos procuram, principalmente estudantes e professores, mas de jeito meio precário. Melhorará muito quando tivermos, como se deseja, uma casa adequada para abrigar o acervo e receber pessoas. Não se pensa em criar um espaço apenas para intelectuais, a ser frequentado somente pelos sete itabiranos que leram obras de Jorge Luis Borges, que sabem quem foi Wilson Martins ou que sacam pra caramba aquilo tudo que disse o filósofo holandês Baruch Spinoza. Nananinanão, a casa será para todos e tanto melhor se receber gente que jamais leu livro. Torre de marfim, xô!!!
Pretende-se uma biblioteca pulsante, não depósito de livros com mofo e crochê de aranha. Que ofereça palestras a quem quiser absorver informações gratuitas sobre consumismo, política, comunicação e outras relevâncias, sem intenção professoral, mas como forma de intercambiar conhecimentos. Todos aprendem com todos, independentemente de carteira, escolaridade ou time de futebol – pensando bem, até acho que os atleticanos são mais sapientes que os azuis, mas deixemos esse assunto para depois.
Outro serviço que a biblioteca prestará é colocar à disposição do público o acervo que o jornal mantém sobre a história de Itabira, formado por jornais centenários, revistas antigas, recortes de reportagens sobre a cidade publicadas na imprensa de fora, fotografias antigas, documentos políticos, papelório de campanhas eleitorais e muitos outros impressos importantes para a história da cidade, colecionados durante 20 anos.
Um lugar agradável, de paz, que favoreça a reflexão e dessacralize a literatura, ora silencioso, ora com boa música baixinha. Com quadros na parede, inclusive, ensanduichadas em bom vidro, raridades como os originais de desenhos que um tal Millôr Fernandes fez especialmente para O TREM e o exemplar 307 do Correio de Itabira, que há 113 anos publicou a primeira notícia sobre o tão noticiado Drummond – preciosidade que nem o bibliófilo tem-tudo José Mindlin tinha e nem a Biblioteca Nacional tem.
Bom reforço ao projeto veio recentemente da parte de uma das maiores empresas do hemisfério: nossa querida Vale – sim, querida, até damos uns cascudos na mineradora de vez em quando, mas é tudo por amor, claro. Em dezembro, fechamos com a companhia esta parceria cultural: receberemos centenas de livros novos de boa literatura em troca da cessão de textos e fotos de Chiquinho Alfaiate para um livro que a empresa lançará em homenagem ao cronista itabirano, colaborador dO TREM de 2005, início do jornal, até 2014, quando morreu.
“Oh, bendito o que semeia / Livros, livros a mão cheia, / E manda o povo pensar… / O livro, caindo n’alma, / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar…” Com Castro Alves, me despeço. Sonho revelado, sejam bem-vindos os parceiros para realizá-lo.
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Marcos Caldeira Mendonça é jornalista, editor d’O TREM Itabirano