Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O grande irmão na era da internet

Seria possível que uma empresa dominasse o mundo? Nada de armas ou exércitos aqui, estamos falando de algo bem mais sutil: uma rede social que se ramificasse de forma tão profunda na sociedade que se tornasse indistinguível dela. Essa é a ideia por trás de O Círculo, uma fábula distópica escrita por Dave Eggers que apresenta um futuro não muito distante e inquietantemente possível. A obra, lançada em 2014, levanta questões cruciais em tempos digitais sobre temas como privacidade, superficialidade das relações sociais, memória, democracia e limites do conhecimento humano.

Esqueça Facebook, Google, Microsoft, Apple, Twitter – o Círculo é uma espécie de amálgama de todos eles, a rede social definitiva. Jovem, ousada, inovadora, visionária, ela representa o futuro. Embora sejam obras muito diferentes, é difícil não traçar paralelos com clássicos como 1984 e Admirável mundo novo.

O Círculo soa quase como uma atualização desse pesadelo de futuro tecnocrático de vigilância total, quase um guia de primeiros passos para dominação global – inclusive mostrando como é simples no mundo digital incriminar e desmoralizar as poucas vozes ousadas o suficiente para se levantar. Dessa vez, porém, as ações e palavras dos indivíduos não precisam ser seguidas de perto por algum ministério especial, pois são registradas on-line e em tempo real para serem vistas, acompanhadas – e julgadas – por uma infinidade de amigos virtuais, para sempre.

Paraíso?

A história começa quando Mae Holland é contratada para trabalhar no Círculo por indicação da amiga Anne e larga seu burocrático trabalho em uma repartição pública. Tudo parece cor-de-rosa e, aos poucos, ela – e nós – conhece melhor a organização, sua incrível sede que parece um parque temático e seus ambiciosos projetos. A exemplo de outras bem conhecidas do mundo real, a empresa atua muito além dos serviços para internautas: mapeia o fundo do oceano, por exemplo, e até se propõe a contar os grãos de areia do deserto do Saara. No sonho do Círculo, tudo é possível.

É difícil não se maravilhar com as possibilidades e não pensar que a maioria delas poderia se tornar real dentro de pouco tempo. Braceletes para acompanhamento da saúde em tempo real, câmeras em cada canto do globo com transmissão ininterrupta, pessoas “transparentes” transmitindo 24h de seus dias na internet, chips para prevenir raptos de crianças e armazenar históricos médicos e escolares. Ótimas e palpáveis ideias. Ou não?

No leitor, cada novidade também desperta certo incômodo, crescente, sobre os rumos que esse futuro conectado parece tomar: transparência total, memória permanente e conexão plena – sempre, é claro, para o bem de todos. “Segredos são mentiras”, “compartilhar é cuidar” e “privacidade é roubo”, máximas cunhadas pela própria empresa rumo à sua “completude” já deixam ver o caráter desse novo mundo. Recado, no entanto, ignorado pela sociedade fascinada e empenhada em compartilhar e curtir tudo o que vê pela frente enquanto ignora a democracia que rui ao seu redor.

Vida transparente

A trajetória da própria Mae traz o ponto de vista de alguém que faz parte da “revolução”. É fácil se identificar com ela, compartilhar seu começo reticente e entender o seu fascínio pelo Círculo, mérito da narrativa de Eggers. À medida que ela cresce na empresa, nos leva em um fundo mergulho no imediatismo da sua frenética nova vida digital, construída completamente na rede, sem distinção entre público e privado, valorada e medida por zings (tweets?), curtidas e “caras felizes” e sustentada em frágeis laços. Percebeu alguma semelhança com a vida que muitos de nós já levamos hoje?

Seus pais e seu ex-namorado, além de Anne, são praticamente os únicos laços reais de Mae. Eles funcionam como contraponto que permite enxergar melhor as mudanças na protagonista e o “lado negro” da bem-aventurança trazida por suas novidades tecnológicas. São eles que questionam e jogam luz mais claramente no que o resto do livro deixa subentendido quanto a questões relacionadas a privacidade, liberdade, controle e banalidade no mundo digital.

Também vale destacar a relação de Mae com os três “sábios” que comandam o Círculo – que não por acaso lembram personalidades do mundo atual: o jovem-prodígio, o supremo capitalista e o tiozão carismático, rosto público da empresa. A interação deles com Mae guia suas decisões e leva a trama à beira do mundo distópico das melhores obras da ficção. Seu envolvimento amoroso com o misterioso Kalden, único fio solto no mundo perfeito da sede do Círculo, apesar de não decolar, serve de chave para um final interessante – e até inesperado. 

Alerta

Por fim, O Círculo é uma obra interessante, que coloca em perspectiva os avanços tecnológicos e a própria organização social dos dias de hoje. As questões que levanta não poderiam ser mais atuais e envolventes. O futuro traçado pela obra de Eggers é palpável, com pequenas extrapolações tecnológicas que nem precisam ir tão além das tecnologias atuais (como fazem outras obras do gênero) para traçar o nascimento de uma sociedade de controle total, uma bela atualização do tema. Trata-se de uma mostra de que, se nós ainda não vivemos no mundo de O Círculo, nada impede que ele esteja logo adiante, nos esperando. A conferir. E quem gostou, curta e compartilhe.

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Marcelo Garcia, do Ciência Hoje On-line