Aos sete anos me apaixonei perdidamente pela leitura. Não em sentido figurado, mas num verdadeiro ato de amor. De amor e solidão, pois me escondia nos lugares mais insólitos para ler, exigindo do livro uma reserva, um segredo, um acumpliciamento que não poderia existir às claras e testemunhável. A volúpia de ler era o meu pecado. E eu pecava com volúpia, escondido embaixo do sofá da sala de visitas que cheirava a cera e a vermelhão, no oásis do linóleo verde, vendo os acenos das cortinas de filó que pendiam da janela – possíveis bridas de meus corcéis do sonho. Ali possuía fisicamente os livros pelo tato, pelo olfato, pela visão de olhos esbugalhados e gozosos, na mente que se despenhava pelos abismos de mil léguas submarinas ou escoteiramente acompanhava o pequeno vigia lombardo pelas florestas infiltradas de inimigos. Horas e meses e anos devorei – mas degustando cada palavra, principalmente aquelas cujo sentido não sabia – os quinze voluptuosos volumes do Thezouro da Juventude, encadernados em couro verde, com letras de ouro nas lombadas. Ler era viver, era mais: era viver muitas outras vidas além da minha, em terras em que eu jamais sonharia alguma vez estar, e mais ainda, em terras que nem mesmo existiam, já que nem eram mencionadas no livro e que o êxtase da leitura me induzia em mente a percorrer.
A leitura fez de mim um aventureiro e um cientista, às vezes com riscos de catástrofe. Minha irmã mais nova serviu de alvo às nossas flechas moicanas e um tiro de espingardinha de chumbo repercutiu no beco da farmácia. Ajoelhado em grãos de milho, de castigo por causa da peripécia, minha única preocupação era a de que meu pai me proibisse de ler. Eu não saberia suportar essa paixão contrariada. Mas meu pai era compreensivo, incentivava meu capricho, fazia gosto no namoro. E passei às biografias, aos romances, à medida que ia crescendo e já não me escondia embaixo do sofá. Agora procurava os jardins, o alto do Santo Cristo para meu ato público de ler. Minha volúpia se tornava mais discreta: quem me visse diria que eu estava apenas lendo e não possuindo voluptuosamente as páginas do livro.
Versos de amor
Com o passar do tempo, meu ritual de ler assumiu várias formas: a leitura à noite, enquanto os outros dormiam; a leitura nos momentos de espera e nos meios de transporte – mas leitura em todo e qualquer instante em que não estivesse executando alguma obrigação. Pois ler era agora sobreviver. Era fugir às condições precárias que me eram impostas. Era continuar senhor de um mundo só meu, onde as coisas mais incríveis aconteciam pelo arranjo mágico de um conjunto de letras dispostas no papel.
Sempre fui fiel à minha paixão, embora fosse uma paixão pluralística e donjuanesca, pois inúmeros eram os objetos do meu amor: fileiras e mais fileiras de livros que eu ia guardando nas estantes. Hoje me surpreendo de, às vezes, tomar de um livro que li há quarenta anos ou de encontrar num deles uma dedicatória cuja data me enche de espanto pela brutal passagem do tempo. Mas, ao abri-lo, como que volto a provar daquela mesma emoção com que o li em criança ou muito jovem e me dou conta de que, apesar do tempo, a minha paixão pela leitura não arrefeceu. Olho para a estante e vejo enfileirados todos os gritos de angústia que feriram a minha sensibilidade de ontem, todos os versos de amor que retiniram nos meus ouvidos de rapaz. E me surpreendo, às vezes, ao fechar cauteloso a porta do quarto e tomar com carinho algum volume recém-saído, ao ver que o vou possuir hoje, agora, com aquela mesma volúpia do menino que lia embaixo do sofá.
******
Ivo Barroso é escritor