Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um gesto humilde de Gilberto Freyre

Em meados dos anos 30, Gilberto Freyre tinha posições avançadas de esquerda. De esquerda, mas não socialista ou comunista. Nesse período, escreveu dois livros fundamentais da cultura brasileira: Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados & Mocambos (1936), ambos de forte conteúdo de denúncia social, sobretudo o segundo, e, quase como um “intelectual orgânico” gramsciano, passou para a ação, envolvendo-se com sindicatos de trabalhadores do Recife. Em sua ficha do Dops, em 1935, constava ser “agitador, organizador da Frente Única Sindical, orientadora das greves preparatórias do movimento comunista”. O resto todos sabem: foi deputado constituinte em 1946, quando criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de que se tornaria mentor por toda a vida, e foi endireitando, endireitando, até apoiar o golpe militar de 1964, tornando-se conservador e direitista assumido. Apoiava até a ditadura salazarista em Portugal.

Mas esta nota não tratará de sua obra de escritor e sociólogo e sim de um surpreendente gesto pessoal.

O outro personagem deste comentário é o escritor piauiense Permínio Asfora (1913-2001), que se formou em direito no Recife, foi jornalista no Rio (Última Hora) e militou por toda a vida na esquerda. Hoje prática e injustamente esquecido, Asfora, filho de imigrante palestino, escreveu sete romances e um folhetim. Sua obra mais famosa é Fogo Verde, lançada em 1951 pela editora Brasiliense, um clássico do romance social brasileiro, elogiado por gente do calibre de Álvaro Lins, Guimarães Rosa e Octávio de Faria.

Pois bem. Em meados dos anos 60, eu, praticamente um garoto, tornei-me rato da Biblioteca Municipal de Caruaru, onde a afabilidade da bibliotecária Glória tornava o ambiente mais claro e arejado. Li bastante coisa lá, sem qualquer sistemática, do modo mais caótico possível. E, claro, deixei de ler uma porção ainda maior. Três romances habitavam as prateleiras, às quais tínhamos acesso direto, e estavam na minha mira: Cascalho, de Herberto Sales; Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, e Fogo Verde. Não lembro por que cargas d’água terminei por nunca lê-los, mas sei que são obras importantes. Agora, passados 50 anos, pude ler a reedição de Fogo Verde (2003), pela editora Scortecci.

O romance trata dos conflitos humanos e sociais no interior do Piauí, na primeira metade do século XX, quando foram descobertas cobiçadas minas de cobre, desencadeando disputas econômicas, tramoias políticas e dramas familiares e pessoais, numa linguagem ágil, enxuta, com alguns rasgos líricos. A obra merece, não apenas a fama, mas ser lida e estudada hoje em dia.

Diálogo solto

Onde Freyre entra nessa história? É que, nessa reedição, consta um artigo do sociólogo-escritor, estampado no livro Vida, Forma e Cor, de 1962. Portanto, quando o mestre de Apipucos já se alinhava às correntes conservadoras e, por isso, andou às turras com Permínio Asfora, renitente esquerdista.

A leitura dessas duas páginas, uma espécie de resenha de Fogo Verde, causou-me profunda impressão. É que Freyre, conhecido por sua vaidade extrema – vaidade “justa”, isto é, em total proporção com seu talento e a importância de sua obra –, pratica nesse texto um exercício de humildade e grandeza pessoal e profissional muito, mas muito raras nos meios intelectuais.

O artigo se intitula “Fogo verde e Permínio Asfora” e começa com a seguinte afirmação: “Há romance ‘social’ e romance ‘social’”. Em seguida, as definições. Um é social porque o romancista quase inconsciente “racionaliza” (…) aspecto ou estado social de civilização ou de cultura, por ele mais agudamente sentido ou observado. Cita Dickens, José Lins, Lima Barreto, Marques Rebêlo e outros. Já o outro tipo de romance “social” é deliberadamente social e até socialista, sectário, doutrinário, veículo de propaganda política, “quase sempre um risco para a arte”.

Logo em seguida, vai direto ao assunto:

“Comecei a ler o novo romance de Permínio Asfora – meu velho conhecido do Recife que de repente se separou de mim por motivo sectariamente político e deu até para agredir-me em jornais – com receio de encontrar em suas páginas simples caricatura daquele primeiro tipo de romance social; e explosão ou crua expressão do segundo. Mas aqui estou para dizer bem alto e bem claro que meu receio desfez-se no começo, ainda, da leitura do vigoroso livro; tão vigoroso que, a meus olhos, toma de súbito lugar ao lado de Cascalho, de Herberto Sales; e aproxima-se em qualidade e virtudes dos melhores romances de Jorge Amado e das melhores páginas de José Américo de Almeida, o que escrevo pesando bem as palavras e sem desejo algum de ser agradável a um escritor que pessoalmente antes repugna do que me atrai”.

Diz ainda Freyre:

“Vê-se que o autor, em quem cedo se revelou a vocação de romancista, vem procurando aperfeiçoar-se na arte nada fácil do romance. Que sua linguagem vem ganhando em vivacidade e naturalidade, sem resvalar em excessos de plebeísmo. Que seu modo de associar situações dramáticas às formas e cores de paisagem regional vem aproximando-se de alturas que, em nossas letras, só foram atingidas, até hoje, por mestres autênticos. Que o diálogo de seus personagens é solto, puro, simples sem parecer disco etnográfico, gravado em feira ou em reunião de família sertaneja”.

Vocês se lembram de algum intelectual brasileiro referindo-se nesses termos à obra de um desafeto? Correspondências para a redação.

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Homero Fonseca é escritor