Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A arte diabética

“O senhor está gravemente diabético.” De supetão, vem a notícia. A confirmação da suspeita nasce do último exame de sangue. Diabetes, essa maresia de açúcar que oxida o corpo de dentro para fora, fruto de excessos insalubres.

Não há explicação coerente, mas ao constatar a minha enferma realidade, fui remetido a uma inevitável análise comparativa com a imaturidade da literatura brasileira contemporânea. Sim, venho me manchando com pesadas tintas pessimistas, mas o pessimismo é o combustível que nos faz questionar este establishment editorial que se instalou no Brasil.

A literatura também está diabética. Todos os dias surgem novos escritores, novos editores, uma infinidade de títulos publicados física e virtualmente. Isso é ruim? Jamais, reflete a sede ancestral de expressão e reconhecimento. No entanto, essa inundação de letras não encontra a mesma quantidade de leitores habilitados e dispostos a absorvê-la. É como a glicose que se espalha sem controle num corpo com déficit de insulina.

No século 19 fazia-se literatura para ser lida, os textos publicados em jornais, como folhetins, renderam muitos dos nossos maiores e eternos clássicos. Editores eram editores e escritores primavam pela forma e estilo. Existia respeito e reverência à obra. No século 21, editores são empresários e autores vivem como caixeiros-viajantes. As exigências contábeis sobrepõem-se às expectativas de qualidade e a intensa exposição íntima do autor em redes sociais é usada como ferramenta para atingir metas mercantis. Grandes editoras publicam o óbvio e ganham pela quantidade de livros vendidos. As gráficas de fundo de quintal lucram através da quantidade de autores que publicam e adquirem as próprias obras. Antigamente existiam leitores (mesmo que poucos), hoje implora-se por compradores. A literatura se transformou num oco produto para consumo e vem abandonando sua vocação como arte. Às vezes, fica a sensação que possuímos mais escritores do que leitores.

Ânsia por lucro e fama. Não é errado desejar lucro, o problema é quando o lucro passa a ditar os parâmetros para o artista. É a era dos tutores de escrita criativa, que pregam fórmulas, padrões, banalizam o vocabulário e predizem os temas propensos a ganharem status de best-sellers.

Publica-se o que vende, e não o que fica

No Facebook, cantores, atores, jornalistas da TV, magistrados, jovens oportunistas, pseudointelectuais e celebridades de ocasião disputam espaço e ganham um séquito de discípulos que cultuam o estrelato. São centenas e milhares curtindo personagens travestidos em escritores, que exercitam a mídia eficiente e geram um rastro de escravos mentais fascinados por sentenças de sabedoria plastificada. Produção industrial substituindo o cuidado artesanal e o talento. Reflexos de um mundo dominado e submisso à tecnologia.

Não há cura para a diabetes humana. O caminho é o controle, moderar os exageros, a regra é uma melhor qualidade de vida. Igualmente, a diabetes literária não tem remédio, nem sequer a possibilidade imediata de controle. A solução virá de um sistema educacional melhor estruturado e da formação de leitores mais críticos, que irão exigir um mercado editorial qualificado. Ou seja, o futuro e o otimismo são os profetas da esperança.

Brasil, pátria educadora. Tomara… Enquanto isso, as notas de redação do Enem despencam.

Numa rotina de tempo escasso, em que são lançados milhares de publicações à nossa vista, sem que seja possível a leitura da totalidade, prevalece a obrigação da seletividade. A propaganda repetitiva, que compõem as técnicas de marketing, insiste nos empurrar títulos viciados ou ganhadores de prêmios manjados. Nunca antes foi tão necessário cultivar o discernimento e um roteiro literário que agregue valor cultural.

Ano passado estive em eventos inesquecíveis na Academia Brasileira de Letras e na presença de autores com Cristóvão Tezza, João Ubaldo Ribeiro, Milton Hatoum, Antonio Carlos Secchin, Antônio Torres, entre outros. Parte da plateia ansiava somente por conhecer os hábitos desses escritores, o sistema de trabalho. Não me recordo de alguém levantando o conteúdo das obras e nem arguindo sobre os caminhos da composição. Diante deste cenário materialista e saturado, o valor do que lemos é crucial para esculpir o pensamento, preencher o nosso vazio, traduzir qualquer mínima compreensão do universo que habitamos e para nos livrar da servidão equivocada aos ídolos de barro.

Nélida Piñon foi breve e essencial quando afirmou, numa brilhante palestra, que hoje publica-se o que vende, e não o que fica. Portanto, cumprir a elaboração de um guia de leitura é saber que poucos serão os livros que nos trarão grandeza e muitos os que despejaremos pela urina.

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Alexandre Coslei é jornalista