No início do século XX, o jornalista e escritor Paulo Barreto, mais conhecido pelo pseudônimo João do Rio, podia ser encontrado nos cafés da Rua do Ouvidor e nos terreiros da Cidade Nova, à mesa com políticos influentes ou com cartomantes no subúrbio. Essas diferentes faces do principal cronista da vida carioca na época, autor do clássico “A alma encantadora das ruas” (1910), estão representadas em três livros que serão reeditados pela primeira vez: “Psicologia urbana” (1911), “Os dias passam…” (1912) e “No tempo de Wenceslau” (1917). As obras, que fazem parte da série Cadernos da Biblioteca Nacional, serão lançadas no fim de março.
Num Rio de Janeiro que se transformava rapidamente, o jornalista transitava entre a cidade moderna que nascia a partir das reformas iniciadas em 1903 pelo prefeito Pereira Passos, e a cidade marginalizada, social e geograficamente, pelas mesmas reformas, que queriam acabar com a imagem insalubre e insegura da então capital federal. Para Antônio Edmílson Rodrigues, historiador e professor da PUC-Rio, João do Rio soube captar a tensão do processo de modernização.
– O que está em pauta na sua obra são essas mudanças. Trata-se de uma cidade agitada, que tenta mudar a sua forma para atender proposições internacionais da arquitetura e da própria ideia de civilização. João do Rio percebe isso como uma tensão. Ele sugere que há um lado positivo, de embelezamento, de mudança de hábitos. Mas há também o lado da sombra produzido por essas transformações, as exclusões – afirma Rodrigues, que assina a apresentação de “Os dias passam…”.
Apesar de também ter escrito romances, o jornalista ficou famoso por suas reportagens e crônicas na “Gazeta de Notícias”, publicadas entre 1901 e 1915. Esses textos eram, posteriormente, reunidos em livros, como “Os dias passam…”. A obra, dividida em quatro partes, traz crônicas de situações fantasiosas que incorporam o ambiente e o cotidiano carioca, como as impressões de um viajante ao desembarcar na capital federal em “Chegada de um estrangeiro ao Rio”, além de duas séries de reportagens de repercussão: em “Dias de milagre”, João do Rio acompanhou uma excursão de romeiros a Congonhas do Campo, em Minas Gerais, onde estão as esculturas dos profetas feitas por Aleijadinho. Já em “Dias de burla”, o jornalista desmascarou aproveitadores da fé alheia, um apêndice de outra obra consagrada sua, “As religiões no Rio” (1904).
Na última parte do livro, “Dias de observação”, João do Rio enfoca a elite e as classes médias urbanas. Rodrigues destaca a fina ironia, presença constante em todos os textos.
– Ele vai tentar observar o comportamento das camadas médias e das elites, buscando entender a falta de lógica do que é dito, a superficialidade geral. Há mil brincadeiras irônicas que, no fundo, marcam uma denúncia da ligeireza da modernidade – aponta o professor.
Marialva Barbosa, professora titular da Escola de Comunicação da UFRJ, explica que, no início do século XX, junto com a cidade, a imprensa também se modernizava. É nesse momento que surgem as figuras do repórter e do editor, com a divisão do trabalho dentro das redações, e aumenta o espaço para textos com grande apelo popular.
– O João do Rio era um desses repórteres que transcreviam o cotidiano da cidade. É o primeiro momento de popularização dos jornais, resultado de um processo que começa com o fim da censura, em 1820, e aproveita todo o desenvolvimento tecnológico ocorrido ao longo do século XIX, que permite a explosão das tiragens. Isso começa no Rio e depois será exportado para o resto do país.
Um dândi polêmico
Pessoalmente, o jornalista era um personagem provocativo. João Carlos Rodrigues, autor da biografia “João do Rio: vida, paixão e obra” (Civilização Brasileira), conta que ele gostava de usar cores extravagantes e chegou a ser vaiado no Teatro Lírico, uma das principais casas antes da inauguração do Theatro Municipal, ao aparecer com um colete cor de cereja. Admirador e defensor do escritor inglês Oscar Wilde, João do Rio foi alvo de campanhas negativas por ser homossexual. Ao mesmo tempo, ele também gerava curiosidade. Suas conferências, reunidas em “Psicologia urbana”, eram bastante concorridas e têm títulos sugestivos como “Amável leitor”, “O amor carioca”, “Flirt” e “A delícia de mentir”.
– Essas conferências foram um grande sucesso na cidade. Ele as apresentava mais de uma vez e até em São Paulo. Esses textos são como crônicas prolongadas, sem o limite de espaço do jornal, mantêm o mesmo estilo dele – diz Iuri Lapa, pesquisador da Biblioteca Nacional que assina a apresentação da obra com Lia Jordão. – Quem introduziu esse formato no Brasil, uma moda em Paris, foram os escritores Coelho Neto e Medeiros de Albuquerque. Virou uma febre. O cinema mudo estava começando, não existia o rádio e as pessoas não queriam apenas ler, mas ver e ouvir escritores, cientistas, acadêmicos.
O ano de 1915 marca uma virada na carreira de João do Rio. Em junho, o seu amigo Gilberto Amado – advogado, diplomata e político –, matou o poeta Aníbal Teófilo no salão nobre do “Jornal do Commercio” após um desentendimento. Apesar da absolvição pelo júri, o crime comoveu a opinião pública e a “Gazeta de Notícias” atacava o político ferozmente. Para não criticá-lo, o jornalista trocou de casa e foi para “O Paiz”, jornal ligado a Pinheiro Machado, protetor de Amado.
João Carlos Rodrigues destaca que, a partir daí, João do Rio passa a se dedicar a temas mais sérios, como a política e os problemas nacionais. “No tempo de Wenceslau” reúne textos desse tipo. A obra traz perfis de políticos, críticas ácidas ao então presidente Wenceslau Brás e uma das primeiras reportagens sobre o jogo do bicho na cidade, intitulada “O jogo do Camboja”.
O cientista político Renato Lessa, presidente da Biblioteca Nacional, acredita que as crônicas são uma ótima porta de entrada para o universo da Primeira República, ainda pouco estudada.
– A principal sensibilidade dele, com relação à vida política, diz respeito ao tema da dissimulação, algo inscrito no DNA do homo oligarchicus – diz Lessa, que usa o termo para definir os políticos e os seus hábitos na Primeira República. – O homo oligarchicus é, por natureza, um dissimulador, um especialista na arte de representar a si mesmo e proceder às adaptações necessárias para tal.
Com as três reedições, aponta o biógrafo, todos os seus livros mais importantes ficam à disposição dos leitores. A obra do cronista ainda é chave para entender o Rio, diz João Carlos Rodrigues:
– O que entendemos por espírito carioca começou ali.
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Leonardo Cazes, doGlobo