Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Notícia de um Brasil distante

O primeiro volume de História dos Jornais no Brasil, de Matías M. Molina, corresponde com sobras à grande expectativa gerada em torno da obra. Com rigor de historiador meticuloso e autoridade de jornalista que se dedica há décadas ao estudo de seu ofício, o autor desafia interpretações estabelecidas, corrige versões consagradas e, fiel ao princípio de publicar a melhor informação garimpada, expõe mazelas que vários profissionais contemporâneos de prestígio provavelmente gostariam de limar de suas biografias.

A envergadura enciclopédica do projeto não é incompatível com a inserção de anedotas resgatadas de fontes pouco consultadas e perfis reveladores de pequenos e grandes personagens, que, além de artifício narrativo que tornam a leitura saborosa, têm a função de ilustrar pontos relevantes da história da imprensa brasileira entre 1500 e 1840, o período abordado no livro.

Em entrevista ao Valor, Molina não titubeou ao apontar o nome mais importante desses três séculos. Não que a escolha fosse fácil. Estavam na lista que lhe foi submetida Hipólito José da Costa, editor do Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro, e Cipriano Barata, responsável pelo lendário Sentinella da Liberdade. Molina, porém, ficou com o relativamente menos conhecido Evaristo da Veiga, de A Aurora Fluminense.

Moderado em tempos de extrema polarização entre conservadores e liberais da conturbada Regência, o deputado e principal redator do jornal de maior circulação do Rio teve, segundo o autor, forte influência nos rumos do país. “Ele ajudou a formar a nacionalidade brasileira”, avalia Molina, para quem sua defesa de uma monarquia constitucional foi importante para que o Brasil escapasse de uma República que desagregaria a nação, como aconteceu na América espanhola.

Evaristo da Veiga pagou um preço alto por suas posições. Em 1832, cinco anos antes de morrer, aos 37 anos, o jornalista foi alvejado por um tiro de pistola em frente da livraria do irmão, conta Molina. Com um pedaço de chumbo encravado abaixo do olho esquerdo, ele leria nos jornais adversários críticas, não ao atentado, mas à má pontaria do agressor. Ninguém foi punido. “O assunto foi logo esquecido, e o episódio ficou como exemplo da violência da vida política e da linguagem sem freios da imprensa da época”, diz Molina. Quanto à vítima, não se abalou e continuou a exercer seu poder de líder dos moderados. “Dizia-se que governava o Brasil do balcão da livraria.”

Proeza editorial

Com nítida vocação de obra de referência, História dos Jornais no Brasil restabelece a verdade factual sobre passagens obscuras da era colonial. O Brasil era a única colônia portuguesa onde não havia tipografia, o que inviabilizava a produção de jornais impressos e, em consonância com os interesses de Lisboa, dificultava a propagação de ideias sobre a independência. Estudiosos como José Marques de Melo, no entanto, acreditam que jesuítas espanhóis teriam montado uma tipografia “em território brasileiro, às margens do rio Paraná”.

A pesquisa exaustiva realizada por Molina mostra que essa informação está errada. “Eles fizeram uma confusão danada”, comentou Molina nesta semana. No século 17, os padres instalados em missões guaranis chegaram a solicitar ao governo de Madri (e não a Lisboa) um prelo para impressão, pedido que nunca foi atendido. Décadas mais tarde, por volta de 1700, essa comunidade religiosa e indígena construiu um equipamento improvisado. Nessa altura, no entanto, aqueles jesuítas e guaranis não estavam mais no Brasil, pois haviam sido transladados “para uma região que atualmente é argentina”.

Outro especialista cujas informações merecem reparos é Nelson Werneck Sodré, autor de A História da Imprensa no Brasil, ainda o principal livro sobre o tema, apesar de ter sido publicado há quase meio século. Molina afirma desconhecer de onde Sodré tirou a informação de que a tipografia trazida para o Brasil em 1808 com a família real estaria caindo aos pedaços. Talvez tenha sido o viés ideológico de um intelectual comunista para quem tudo o que vinha da Corte, por definição, não podia ser bom. “Na verdade, era uma das mais modernas do mundo, toda feita de metal, e serviu de modelo para outras construídas em madeira. Do ponto de vista gráfico, a imprensa régia tinha publicações de ótima qualidade.” De qualquer maneira, Molina rejeita a expressão “erros históricos” e prefere falar em “pequenos deslizes”.

Erro histórico mesmo foi o cometido em 1853 pelo Diário do Rio de Janeiro. O jornal, diz Molina, avançando um pouco no corte cronológico proposto, “participou de uma das confusões mais curiosas da literatura em língua portuguesa do século 19”. Na época os jornais costumavam publicar romances-folhetins em capítulos. Um dos mais populares foi O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, publicado no Jornal do Commercio em 1845 e 1846. Pois o Diário, tentando dar o troco no concorrente, publicou a continuação do romance, intitulado A Mão do Finado. Só que Dumas não havia escrito nada. O livro, de autoria de um português, tinha sido erroneamente atribuído ao francês. A correção foi feita pelo próprio Dumas em carta enviada ao Jornal do Commercio.

Poucos anos depois, em 1862, o Jornal do Commercio, que Molina considera “talvez a publicação mais influente que o Brasil já teve”, seria protagonista de uma proeza editorial. Começou a publicar Os Miseráveis, o grande romance de Victor Hugo, antes que o texto original viesse à luz na própria França. Embora o valor da compra da exclusividade mundial não seja conhecido, o negócio sugere o fôlego do veículo.

In loco

História dos Jornais no Brasil, porém, está longe de dar muito espaço a amenidades. Um dos capítulos mais contundentes é o que trata de “subsídios e subvenções” à imprensa. Aqui o assunto é corrupção, e os jornalistas, acostumados à condição de estilingue, passam à condição de vidraça. O impacto do material é tanto maior quanto mais próximo está dos dias de hoje, já que Molina optou por esticar a narrativa até muito além do período em foco no livro.

O trecho começa com uma história patética de Justiniano José da Rocha, “que já foi considerado o maior jornalista brasileiro”. Em 1855, ao falar ao Parlamento, o redator do jornal O Brasil, que defendia o governo do Partido Conservador, admitiu ter recebido, como presente de um ministro, escravos que tinham sido apreendidos durante a repressão ao tráfico.

“Poucas vezes foi exposta de maneira tão direta a relação de uma parte da imprensa com o governo”, afirma Molina. Rocha, que costumava assinar recibo pela propina que lhe era paga, expôs suas misérias. “Disse que era um jornalista pobre, fiel à causa conservadora, mas tinha família numerosa e enfrentava dificuldades.”

Para Molina, o discurso de Rocha ficou famoso “por revelar, de maneira chocante, um caso raro em que um jornalista reconhece receber dinheiro do governo. A maioria dos jornalistas que recebem dinheiro ou favores do governo é muito mais discreta”. Para o autor, o caso não constitui exceção. “A história da imprensa brasileira é a história dos subsídios, numa extensão muito maior do que se tem reconhecido.” E a história não está restrita ao passado, sugere o livro. “Praticamente todos os governos do Império e da Primeira República subsidiaram a imprensa, compraram seus elogios ou estimularam seu silêncio com fundos secretos. Os governos posteriores não perderam o hábito, mas foram mais hábeis em dissimular essas práticas.”

Molina relaciona casos representativos de corrupção da imprensa. No Segundo Reinado, o escritor José de Alencar, que era liberal, foi atacado por ordem do Partido Conservador. Sua obra literária foi menosprezada por críticos pagos por verbas secretas. Mais tarde, já na Primeira República, o presidente Campos Salles se notabilizou por reconhecer em suas memórias que pagava subsídios à imprensa. “Não duvidei em trilhar por esse caminho francamente aberto e trilhado pelos que me antecederam”, escreveu com candura em Da Propaganda à Presidência.

Há muitos exemplos dos dois lados do balcão. Do lado do governo, Molina cita o barão do Rio Branco, generoso em seus pagamentos à imprensa “no Brasil e no exterior”. Do lado da imprensa, não poderia faltar a menção a Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados, que “considerava normal vender as informações e as opiniões de seus jornais”.

Sobre jornalistas contemporâneos, a tônica recai sobre a prática do duplo emprego, um no jornal e outro no setor público, que não era incomum até as últimas décadas do século 20, mesmo nos grandes jornais. Nessa categoria são citados, ao lado dos cargos que ocuparam em entidades do governo, nomes de grande expressão no jornalismo como Carlos Castello Branco, Ferreira Gullar, Evandro Carlos de Andrade, todos do Diário Carioca na época.

Molina registra que “até há pouco tempo, o pagamento de ‘subsídios’ em algumas ocasiões era justificado por jornalistas de prestígio”. Barbosa Lima Sobrinho, por exemplo, achava que o caso de Justiniano da Rocha tinha defesa. Para ele, só os chantagistas deveriam ser cortados do esquema, que seria limitado aos jornais de grande tiragem. “O que Barbosa Lima não explica”, argumenta Molina, “é como a imprensa subvencionada poderia manter sua independência e cumprir com sua obrigação de fiscalizar o governo se sua sobrevivência dependesse dele.”

É com esse espírito crítico que Molina prepara o restante da obra, que abarcará um período em que ele próprio foi protagonista, como editor em vários jornais e redator­chefe da Gazeta Mercantil nos anos 80, onde ajudou a formar uma geração de jornalistas de economia.

Os volumes dois e três da primeira etapa, que tratam dos jornais do Rio e de São Paulo a partir do Segundo Reinado, estão praticamente prontos. Falta só um último capítulo, sobre a internet. Molina avisa que não tenta adivinhar o futuro dos jornais, mas antecipa sua opinião: no momento eles estão tentando se recuperar de uma “política suicida e sem nenhuma lógica comercial [de] disponibilizar gratuitamente na rede o mesmo conteúdo pelo qual seus assinantes tinham que pagar”.

Quanto à segunda etapa, Molina ainda não sabe nem quantos livros terá. Aos 77 anos e com mais de seis décadas de Brasil, o jornalista nascido na Espanha tem muita disposição e planos de viajar por alguns Estados para coletar in loco dados sobre os jornais das praças mais importantes do país.

******

Oscar Pilagallo é jornalista e autor de História da Imprensa Paulista e A Aventura do Dinheiro