“Os governos já recorreram à violência física, às ameaças, à arbitrariedade e à tortura para eliminar as críticas da imprensa. Ultimamente, vêm mostrando preferência por comprar os elogios com dinheiro ou favores. A imprensa tem uma memória longa para lembrar que as alternativas mencionadas de pressão ou persuasão não foram necessariamente abandonadas, e também para saber que há circunstâncias em que a subvenção, direta ou indireta, é mais insidiosa e pode ser mais perigosa para a liberdade de imprensa do que as ameaças.” (Matías Molina, História dos Jornais no Brasil, volume 1, pág. 472)
É como se uma parede escura e compacta se dissolvesse de repente, deixando ver uma paisagem fervilhante, com milhares de histórias acontecendo ao mesmo tempo. A experiência de ler esse monumental empreendimento de pesquisa histórica que é A História dos Jornais no Brasil (que é apenas o primeiro de vários volumes que estão por vir) lembra o encantamento do menino do Mutum que não se sabia míope e, ao provar pela primeira vez um par de óculos, divisa o recorte fino do mundo miúdo que para ele tinha estado oculto. Como se fosse o Miguilim de Guimarães Rosa, o leitor enxerga com nitidez. Diante de seus olhos, abre-se o código genético da imprensa pátria. O “campo geral” apresentado nesse grande trabalho de Matías Molina faz reviver os jornais que teceram a vida política brasileira nos séculos 18 e 19. Lá estão os periódicos, seus redatores tantas vezes presos, as escaramuças retóricas. Lá estão também os claros, os descampados, os vazios ainda mais clamorosos não da imprensa que tivemos, mas da que sempre nos faltou.
A exaustiva pesquisa empreendida pelo autor deixa patente que não há comprovação de impressões gráficas no território do Brasil Colônia. “Por que o Brasil demorou três séculos para dispor de uma indústria gráfica e imprimir jornais, livros e folhetos?”, pergunta o autor (pág. 54). “Esse é um enigma que atraiu a curiosidade e a atenção dos historiadores, mas que ainda não foi decifrado.” Páginas adiante, outra face do mesmo mistério: “Alguns autores perguntaram por que os jesuítas, que instalaram prelos em várias colônias portuguesas na Ásia e na África, não fizeram a mesma coisa no Brasil. Essa pergunta continua à espera de resposta”. Se, no Iluminismo, a palavra era a portadora da luz e da razão, a terra brasileira ficou no escuro – e, mesmo, na bestialidade – durante muito tempo.
As hipóteses para explicar a treva entrelaçam duas linhas mais ou menos constantes. De um lado, a Coroa não queria, embora não se preocupasse em proibir expressamente, a instalação de prelos no Brasil. Quando necessário, abortou as tentativas, como em 1747, quando mandou voltar a Lisboa as letras de impressão que António Isidoro da Fonseca estaria montando no Rio (págs. 82 e 83). De outro lado, a palavra impressa não fazia falta ao modo de vida da colônia. Não havia esfera pública, não havia comunicação social, não havia jornalismo e, claro, quase ninguém pensava em democracia. Quem tentou, dançou na corda (como se dizia dos enforcados).
Notícia e razão
A história da imprensa brasileira é um sorriso banguela. Os dentes que lá não estão se destacam mais do que os que restam. O que mais chama a atenção é o que não houve. Contemplando o quadro de ausências, entendemos um pouco melhor a lentidão com que a democracia (não) se desenvolveu por aqui. O chavão de que não há democracia sem imprensa livre é tragicamente verdadeiro na leitura desse livro. Não há mesmo.
Assim, a história da imprensa brasileira é sobretudo a história da não imprensa brasileira. E do suborno generalizado da pouca imprensa que ousou existir. Há registros de que o próprio Hipólito José da Costa, que, entre 1808 e 1822, editou o mensário Correio Braziliense (que era impresso em português, por certo, mas na cidade de Londres, é bom não esquecer), ganhou ajudas polpudas do poder. Molina anota que, em 1812, “D. João teria mandado pagar antecipadamente, como ‘garantia de ajuste’, 2 mil libras esterlinas, uma enorme quantia na época, para que o Correio suavizasse as críticas”. (pág. 137).
É que Hipólito dava trabalho. Incomodava. Tanto que seu jornal foi proibido no Brasil e, antes de entrar em acordos monetários, “o governo alugou vários escribas encarregados de escrever panfletos contra Hipólito” (pág. 132), lançando mão do recurso que faria escola entre os estrategistas das guerras midiáticas do século 21, que financiam cyeberescribas cybergovernistas para falar mal de repórteres honestos.
Isso tudo sem falar da truculência do poder, dos assassinatos e da censura. Não nos esqueçamos de que, em 1808, a Mesa Censória veio de Portugal dentro das naus que trouxeram a Corte e logo fixou residência no Rio de Janeiro. Antes da própria imprensa, anote-se. A história dos jornais brasileiros é também a história da censura. E mesmo assim é fascinante. A gente lê e vê o passado presente: “uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas”. A notícia é triste, mas a razão é boa.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM, e autor, entre outros livros, de O Estado de Narciso – A comunicação pública a serviço da vaidade particular (Companhia das Letras)