Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Na Palestina, a câmera era a minha pedra”

Conheci o antropólogo e fotógrafo Rogério Ferrari em 2006 em Salvador, onde eu estava cobrindo o 2º Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual para a revista Fórum. Na época, conheci seu livro A Eloquência do Sangue, edição de fotografias feitas entre janeiro e março de 2002 na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, aonde foi com pouco dinheiro para “fazer um trabalho que representasse um contraponto às informações difundidas historicamente com relação à Palestina”.

As fotos do livro, em preto e branco, retratam a luta das pedras (mas não só pedras, alguns fuzis também) contra o poderoso exército de Israel. Retratam os funerais dos jovens, o cotidiano de luta e dor, as pichações, as crianças palestinas, os check points e as barreiras militares. Muitas fotos foram feitas dentro do teatro da guerra propriamente. São fotos com movimento, fortes, impressionantes. E acima de tudo belas. Ferrari passou três meses na Palestina para produzir as fotos de A Eloquência do Sangue (edição do autor), esgotado. Mas há uma edição mais recente, francesa (Ed. Le passager clandestin – 2008), que inclui o trabalho feito nos campos de refugiados palestinos na Jordânia e no Líbano. “É uma versão mais atual, com a uma intenção de dar amplitude dessa tragédia e dessa resistência”, diz o fotógrafo.

Autor de outras obras construídas a partir de fotografias in loco sobre os curdos e os zapatistas, Rogério Ferrari lança livro e exposição sobre outro povo excluído: Ciganos, quem são eles?

Os livros do fotógrafo (veja abaixo, depois desta entrevista) podem ser adquiridos por meio do e-mail do próprio autor, em seu site neste link: Rogério Ferrari.

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No seu livro A Eloquência do Sangue, há um texto do poeta palestino Mahmud Darwish que diz: “O que vemos agora é expressão de um povo que não tem outra escolha a não ser resistir.” Dá para esperar que algo mude essa resistência e essa dor a partir das Nações Unidas?

Rogério Ferrari– Com relação à ONU, é difícil ter uma expectativa positiva porque, a exemplo de tudo o que está acontecendo no mundo, ela está longe de ser realmente uma representação dos interesses da comunidade internacional. O que acaba prevalecendo é a influência e o poder dos Estados Unidos, com a conivência de outras potências. A Palestina é uma expressão maior dessa incompetência e conivência da ONU em relação a esse conflito na medida em que todas as resoluções por ela aplicadas sobre Israel são desrespeitadas e não há nenhuma consequência por conta da blindagem que Israel tem, sobretudo pelo apoio dos EUA. Apesar de todo o discurso de Obama, os EUA vão ser contra o reconhecimento da Palestina como Estado permanente. Então é uma incógnita e incógnita seria a expressão do nosso otimismo, por conta da possibilidade de alguma surpresa. Mas, sabendo como se comporta a ONU e os exemplos do que vem sendo a ordem política internacional, grande expectativa a gente não pode ter.

Você acha que o mundo mudou para melhor, para pior ou continua igual com Barack Obama?

R.F.– Eu acho que mudou não por conta de uma política resultante da presença de Obama como presidente dos Estados Unidos, mas em decorrência de tudo o que a gente tem visto acontecer, que, de alguma forma, independe da vontade dos Estados Unidos, a exemplo do Egito, que é uma situação que estabelece uma relação diferente, a transformação de um Estado árabe poderoso como o Egito, antes completamente conivente e apoiador da política dos EUA e parceiro de Israel.

Você tem atração por trabalhos com claro cunho social e político. O que especialmente te levou à Palestina?

R.F.– Fui justamente por conta dessa condição mínima de fotógrafo, fotojornalista, de fazer um trabalho que representasse um contraponto às informações que são difundidas historicamente com relação à Palestina. À exceção de alguns meios alternativos que poucas pessoas acessam, a informação corrente é a que estigmatiza o palestino com a ideia de terrorista e tudo mais, tudo isso que a gente já sabe. A decisão de ir pra lá foi movida por essa inquietação, por esse propósito de proporcionar uma informação sob um outro ponto de vista que não estigmatiza o conflito, primeiro colocando os palestinos como terroristas e algozes e também plantando a versão de que é um problema de religião, quando a gente sabe que é um problema básico e fundamental de terra e do direito de um povo à autodeterminação.

Em sua viagem, você chegou a ficar várias horas sob a mira de fuzis de soldados israelenses em determinado dia, não é?

R.F.– Sim, isso aconteceu. O que acontece com o povo palestino é humilhação e agressão – os check points e as barreiras militares. Saramago disse que, guardadas as proporções, não há uma diferença essencial entre as cidades palestinas e os campos de concentração em que viveram os judeus durante a repressão nazista. Eu, por estar lá e ter uma aparência árabe, fui submetido a essa situação que o povo palestino passa todos os dias, que é a revista, a agressão, a ameaça. Fiquei oito horas detido sob a acusação de ser membro da Jihad islâmica, com fuzil apontado para a cabeça, com revista ostensiva, interrogatório em árabe, enfim, uma situação que dá a dimensão do que é ser palestino, ainda que eu tenha passado por isso não mais do que três vezes. Então, vivendo isso, você tem condição de entender por que a decisão de tornar-se um homem bomba, de fazer a resistência se utilizando do corpo como último recurso.

Você teve medo de morrer, nesse ou em outros momentos?

R.F.– Esse momento foi realmente um momento em que eu senti medo porque estava numa situação de completo isolamento, cercado, diferentemente de outras circunstâncias que, porém, eram mais arriscadas em situação de conflito, de estar no meio dos palestinos fazendo a resistência com pedras, e do outro lado os israelenses com o exército super-armado, atacando as cidades e atirando frontalmente. Então, havia duas dimensões: a de estar numa situação que eu escolhi, não por propensão a ser mártir, mas correndo o risco que era próprio do trabalho que me dispus a fazer, e uma outra, numa circunstância que eu senti um medo maior porque eu estava isolado e detido no meio dos israelenses que poderiam fazer qualquer coisa comigo.

Algumas fotos do seu livro são feitas dentro do teatro da guerra mesmo. O que você sentia?

R.F.– É uma sensação realmente confusa porque não é uma adrenalina no sentido da busca da aventura, do risco, de me nutrir do espetáculo da guerra, tanto que eu não me considero nem me digo um correspondente de guerra, nesse aspecto de estar buscando os conflitos e as situações de guerra pra retratar, mas, sim, é uma escolha a partir de uma identificação política e ideológica com determinados assuntos. No caso da Palestina, digamos que a câmera era minha pedra e eu procurei, dentro do possível, não estabelecer essa distância, essa relação objetiva como se supõe que deve haver no jornalismo. Isso poderia de alguma forma ser considerado uma imprudência, uma inconsequência, por conta do risco. Mas foi uma coisa que me dispus a fazer e, consciente ou inconscientemente, às vezes eu me via em situações que… realmente eu poderia não mais estar aqui.

O que mais te marcou ou foi impactante?

R.F.– São dois sentimentos: de imediato, provoca uma sensação de impotência, tamanho o domínio, tamanha a opressão e tamanha conivência e paralisia do mundo diante desse conflito, e de outro lado a determinação do povo palestino de não se render. E, paralelamente a isso, diante de tanta repressão e sofrimento, você vê um povo altivo, hospitaleiro, que expressa o desejo de paz.

Você pretende em algum momento voltar à Palestina?

R.F.– Espero em algum momento poder voltar para compartilhar a vitória palestina e de alguma forma também ampliar o trabalho e poder retratar coisas mais atuais. A ideia de voltar, quero pensá-la mais quanto à perspectiva de celebrar a vitória do que voltar para retratar a mesma realidade. Porque um aspecto da tragédia palestina, sobretudo do ponto de vista fotográfico, se você esteve lá vinte, trinta anos atrás, é a mesma realidade de hoje.

Outros livros do autor

Ciganos, quem são eles? (lançamento: setembro de 2011)

Zapatistas – a velocidade do sonho. Entrelivros – Thesaurus – Brasília, 2006

Curdos uma nação esquecida. Edição do autor – Salvador, 2007

Palestine. Passager Cladestin. França. 2008

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[Eduardo Maretti é jornalista]