“K é o relato da busca desesperada de um pai pela filha desaparecida. No mesmo passo, somos levados a dois universos kafkeanos: o labiríntico d’O processo e o hierático d’O castelo. Mas se o pano de fundo é dado pelo escritor tcheco, a cena evocada é a do pântano da ditadura brasileira, hoje ainda fumegante e cheio de lacunas. No passado o pai procura resgatar a filha ou pelo menos a sua imagem; o escritor de hoje tenta impedir o esquecimento e reconstruir a memória. A narrativa é fragmentária, através de instantâneos elaborados a partir de pequenos detalhes, objetos, palavras que espocam liberando esperanças e desilusões. Se a dor suprema pertence ao pai, a sua tragédia é a de todos nós.”
Estas são as linhas que escrevi para a quarta capa do livro de Bernardo Kucinski, K, que está sendo lançado por esses dias em São Paulo, pela Editora Expressão Popular.
Há escritores que chegam à maturidade literária ainda na juventude. O caso clássico é o do poeta francês Arthur Rimbaud, que escreveu toda a sua obra antes dos 21 anos, antes de abandonar a escrita literária. No Brasil, há a tradição dos poetas românticos que morriam jovens. Mas há outros casos, como o do poeta catarinense Cruz e Sousa, morto aos 38 anos, e de Hugo de Carvalho Ramos, um dos principais escritores regionalistas do Centro-Oeste brasileiro, morto na casa precoce dos 20 anos.
Mas há outros escritores que descobrem a juventude literária (no sentido da experiência inovadora) na plena maturidade: é o caso de Bernardo Kucinski, que ultimamente vem publicando na imprensa uma série de contos e até um romance em folhetim (no Diário do ABCD), e agora estréia no romance, com este K.
“Apenas um trabalho profissional”
Romance modo de dizer: na verdade um romance híbrido, entre este gênero da modernidade e, mais do que o conto, a tradição antiga, medievo-renascentista, da “novela emoldurada”, como no Decamerão, de Bocaccio. K é uma narrativa fragmentária, cujos textos/capítulos podem ser lidos no mais das vezes independentemente uns dos outros. Não me surpreenderia se alguns dos textos aparecessem, no futuro, em antologias do conto brasileiro.
Porém o que amarra as narrativas, para além da continuidade factual do pai que procura a filha perdida com o genro nas masmorras da ditadura, é a construção da consciência contemporânea, de hoje, do escritor frente à própria memória. Na tradição da “novela emoldurada”, há sempre uma narrativa-mãe que explica a existência das outras. No citado Decamerão é a história da peste em Florença. Para escapar da doença, um grupo de amigos e amigas se refugia numa villa (no sentido italiano, uma residência/chácara, de gente abastada) nos arredores. Lá, para passar o tempo, contam histórias uns para os outros, e assim a vida corrupta, buliçosa e em transformação da gótica Florença vai desfilando pelas narrativas. Com o fim da peste, terminam as histórias e o livro.
Tive (assim como alguns outros amigos) acesso à obra de Bernardo enquanto um work in progress: trocamos idéias, comentários, perguntas, algumas com ansiedade, outras com veemência, ainda outras com devoção. Não sei agora, no livro pronto, a exata ordem em que estão compiladas. Mas para mim a narrativa seminal, que “emoldura” as outras, é a do escritor que continua recebendo correspondências em nome da irmã desaparecida, quer dizer, assassinada pela ditadura. Inclusive correspondências cuja origem é muito posterior a seu desaparecimento e morte: são correspondências de bancos, publicidade, coisas desse gênero. Essa, parece, é a verdadeira “vida além-túmulo” da personagem que aparece/desaparece no livro.
Essa narrativa/moldura mostra que no livro há um processo catártico. Quero esclarecer logo que para este crítico que aqui escreve, afeito às coisas do teatro desde os tempos aristotélicos e anteriores, essa palavra nada tem de pejorativa. Significa, muito pelo contrário, um processo de purgação da memória, de sua atualização, que está presente em toda e qualquer obra de arte, mesmo a mais brechtiana delas. O contrário do distanciamento crítico brechtiano não é a catarse aristotélica: é o apaziguamento da consciência pelo consumo em geral meloso de clichês adormecentes do juízo crítico e da mais instigante fruição estética, que é a da descoberta de uma consciência articuladora outra em confronto com a nossa.
“Purgação da memória” não significa esquecimento, anestesia; pelo contrário, significa sua reconstrução com foco tanto na recuperação do passado quanto na libertação do futuro, liberar este para que não seja a repetição daquele, mesmo que invertida. Uma das coisas mais dolorosas que ouvi no cárcere (uma curta temporada, nada mais) foi a afirmação de que “aquilo era apenas um trabalho profissional”, que, “se vocês precisarem um dia, estaremos aqui para fazer a mesma coisa para vocês”. (O mais terrível é que eu sabia que isso podia se tornar uma verdade).
Avanços e contradições
Deve-se sublinhar que, por melhor intencionada que seja, a “obrigação primeira” de uma obra literária é ser boa literatura, “compensar o corte da árvore que forneceu o papel para o livro ser impresso”, como dizia meu amigo João Antonio antes do tempo do papel reciclado e do e-book. E isso K é. Tanto no fragmentário da prosa emoldurada quanto no estilo narrativo que parte, como já disse, da evocação de detalhes para a construção do quadro narrativo, se nota o travo de um dos melhores jornalistas que o Brasil já teve, assim da estirpe de Rubem Braga, Machado de Assis na crônica e na crítica, e muitos outros. Ler K é uma aula de bom português criativo, variante Brasil.
De resto, K dá uma contribuição relevante para a rearticulação da memória brasileira em tempos de “Comissão de Verdade”, com seus avanços e contradições. Até porque, ao contrário da Florença de antanho, no nosso Brasil a peste que a ditadura introduziu na vida brasileira ainda não passou.
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Flávio Aguiar é correspondente internacional da Agência Carta Maior em Berlim.